Opinião
Carpe Diem
Tal não significa um viver imperturbável e arredado do que nos custa, ou dói, ou desespera, procurando nos dias a possibilidade de festa permanente
É uma frase que se lê, e ouve, com alguma frequência, encurtada de Carpe diem quam minimum credula postero.
Quando usada como conselho para que não seja lembrado ou se faça por esquecer o que nos possa afligir, ou como proclamação de que tudo vai bem, mesmo quando não, porque o dia será transformado em rosada alegria, a pequena frase foge à ideia original, e abriga o engano de se julgar possível (e útil) um viver alegre e despreocupado e, portanto, a possibilidade de adiar para sempre as aflições.
A frase, do poeta romano Horácio (65 aC), com a tradução colhe o dia e confia o mínimo possível no amanhã, significa que devemos aproveitar o presente já que a vida é breve e não podemos confiar que será grande a quantidade de dias por chegar.
Mas tal não significa um viver imperturbável e arredado do que nos custa, ou dói, ou desespera, procurando nos dias a possibilidade de festa permanente.
Na verdade, aproveitar o dia será viver todas as suas circunstâncias, sentindo, resolvendo, construindo, e partilhando, ligando o que passou ao que projectamos que possa vir a acontecer, de modo a que a vida se faça um belo caminho com sentido.
Não se trata de viver apenas no presente porque a nossa vida apenas existe através da memória do que aprendemos, do que sentimos, e do que construímos; é pela memória que vamos sabendo quem somos, e com ela, quanto baste, se faz o caminho para o que virá depois.
E não faria também qualquer sentido não nos importarmos com o futuro, não o planearmos de forma a procurar que ele aconteça do modo como os nossos sonhos o querem desenhar, e não o ansiarmos, ou termos medo dele, de quando em vez, quanto baste, também.
Colher o dia é tarefa importante, mas difícil.
Aconchegado entre esse quanto baste de passado e de futuro, cada dia é uma miríade de instantes preciosos que nunca poderemos guardar por inteiro porque não somos sequer capazes de nos aperceber de todos eles.
Quando os dias passam devagar e nos permitem a felicidade do pequeno aborrecimento por algum mais lento escoar de horas que julgamos vazias, fica-nos a consciência de um eu tridimensional, que se desloca entre dois pontos ou permanece aquietado num deles; que sente um cabelo a teimar infinitas vezes roçar a cara, ou o suave queimar do sol num nadinha de pele exposta entre as tiras da sandália; que repara na languidez de um cão deitado ao sol, no ruído longínquo de um motor, ou no esbater demorado do rasto silencioso de um avião.
Fica-nos a consciência de um silêncio que nos circunscreve e nos torna por isso conscientes do corpo e do pensamento no aqui e agora.
Carpe diem.
E fica-nos também a atenção a quem connosco cruza os dias, numa partilha tão simples que não parece fazer história, mas que afinal tece lenta e seguramente uma memória de nós onde um dia precisaremos de voltar.
Carpe diem.
m tempos de agitação interior, de inesperadas dificuldades com pouco fim à vista, ou em tempos em que a vida acontece com leveza e a fiada dos dias se assemelha a um pequenino fogo de artifício, Carpe diem, colhamos toda a espécie de pequenas grandes coisas.