Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Blonde

10 out 2022 14:53

Blonde dá-nos Marilyn como o resultado de um pai que não a quer, uma mãe que não a aceita, dos homens que a consomem e dos filhos que não tem

Blonde é (mais) um biopic do maior ícone sexual do século XX, Marilyn Monroe, baseado no romance de Joyce Carol Oates e realizado por Andrew Dominik. Lançado no dia 28 de Setembro, o filme alcançou de imediato o top dos filmes mais vistos na Netflix, o que mostra que o mito de Marilyn continua vivo, mesmo 60 anos depois da sua morte.

Blonde é uma adaptação (muito) livre da vida de Marilyn, nascida Norma Jean em 1926. Começa em 1933 para definir o ângulo do qual o filme vai partir: a filha não desejada de uma mãe solteira e louca e de um pai que nunca conheceu, que se (re)constrói a partir do olhar masculino, numa eterna procura pela figura paterna. Estabelecida a falha original que determina a necessidade de atenção e amor, o filme vai avançado pela vida de Marilyn, alternando (de forma mais ou menos aleatória) entre preto e branco e cor, realidade e ficção, glamour e decadência, normalidade e excesso, superficialidade e dor. Um bocadinho do que acontece em todas as vidas. E, na vida como nos filmes, a mistura destes ingredientes nem sempre oferece um resultado coerente com um sentido claro.

Mas os filmes não são a vida. São um texto, uma narrativa. Fornecem uma chave de leitura. Por isso, sendo mais ou menos fiel à vida da personagem, é desejado de um biopic uma coerência superior à da vida. A Marilyn de Blonde é personagem de um filme. Esperamos, assim, que o filme que nos defina como devemos lê-la. Mas o espetador fica entregue a si nessa tarefa. No filme fica claro que every girl needs a daddy (música que acompanha a elipse entre a entrega de Norma Jean ao orfanato e o nascimento de Marilyn, feita a partir de uma sucessão de capas de revista e calendários eróticos), mas isso, por si, não parece justificar as escolhas Norma Jean. Fica claro também que Marilyn foi dominada por homens que desejaram possui-la, mas não se percebe se não foi esse desejo masculino que a construiu e alimentou (a cena da saia levantada de O Pecado Mora ao Lado ilustra essa ambivalência ao mostrar, em câmara lenta, os rostos famintos da multidão e a satisfação de Marilyn). Fica ainda claro que a infelicidade de Marilyn é marcada pelos filhos que perdeu (reais e/ou ficcionais), mas não se compreende se isso é um manifesto antiaborto ou um mero dispositivo narrativo. Mas, acima de tudo, fica claro que há uma diferença entre Norma Jean e Marilyn, como se a primeira tivesse uma pureza original que a segunda destruiu, mas Norma Jean alimenta-se de Marilyn tanto quanto esta se alimenta do male gaze que, simultaneamente, a destrói. A destruição final é personificada por John Kennedy, que encarnará, juntamente com Zanuck, a violência e voracidade masculina que Marilyn, definindo-se a si mesmo como personagem de filme, assumirá ter de engolir.

Blonde dá-nos Marilyn como o resultado de um pai que não a quer, uma mãe que não a aceita, dos homens que a consomem e dos filhos que não tem. Uma mulher frágil, perdida dependente e superficial, sem a densidade psicológica que o filme ambiciona. De entre os filmes que vão ilustrando a carreira de Marilyn falta Os Inadaptados, o seu último filme, que nos dá a vulnerabilidade e densidade a que Blonde aspira. Ainda assim, a interpretação de Ana de Arm e a banda sonora de Nick Cave fazem do filme uma coisa a ver.