Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Nada a Esconder

5 dez 2022 11:15

Um jogo em que as personagens, que supostamente nada têm a esconder, acabam por se revelar perfeitos desconhecidos

Nothing to Hide (No original Le Jeu, traduzido para Nada a Esconder) é um filme francês de 2018 realizado por Fred Cavayé, disponível na Netflix. Trata-se de uma adaptação do filme italiano Perfetti Sconosciuti, de Paolo Genovese, realizado em 2016. O filme original de Paolo Genovese deu origem a várias adaptações para cinema (em países tão diversos como Espanha, México, Índia, Grécia, Coreia do Sul, Japão, Roménia, Líbano, Países Baixos, entre muitos outros) tendo entrado para o Guiness Book como o filme com mais remakes. Mas o texto foi também adaptado para teatro. Em Portugal, a peça Perfeitos Desconhecidos, adaptada e encenada por Pedro Penim e com Jorge Mourato no elenco, esteve em cena no Teatro José Lúcio da Silva em janeiro deste ano.

O sucesso da fórmula está na sua simplicidade: sete amigos, na casa dos quarenta, reúnem-se para jantar numa noite de eclipse lunar. Eles, amigos de longa data. Elas, as mulheres com quem eles casaram. Um deles sozinho porque a nova namorada está doente. Entre eles há um médico, uma psicóloga, um taxista, um professor no desemprego. Os restantes personagens não têm profissão claramente definida, mas já está estabelecida a amplitude social que permite a identificação do espetador.

Os problemas abordados são os típicos da faixa etária: casamentos desgastados, filhos a crescer, sogros, envelhecimento, sexualidade, rotina e tédio. Como diz uma das personagens da versão espanhola, não há nada pior do que o tédio. O tédio leva à procura de novidade, excitação, experiências que ultrapassem um quotidiano feito de trabalho e família. Pequenas ou grandes traições, vividas em segredo, que constituem uma outra identidade para além da que é partilhada com quem se vive ou é próximo. E é aqui que o filme se torna interessante, cruzando o que está implícito nos diferentes títulos: um jogo em que as personagens, que supostamente nada têm a esconder, acabam por se revelar perfeitos desconhecidos.

A regra do jogo é simples: partilhar todas as comunicações recebidas nos telemóveis durante o jantar. A partir daí, cada mensagem, cada chamada, cada notificação recebida vai revelando uma nova camada de identidade, feita não apenas de relações secretas, mas daquilo que se é para além de amigo ou parceiro romântico e que nos faz ser continuamente outro de nós. Os personagens de Nothing to Hide são também filhos, pais, ex-namorados, colegas, clientes, e em cada um desses papéis se revelam como desconhecidos para quem os conhece.

São múltiplas as questões que o filme levanta. Poderá alguém conhecer-nos em todas as nossas múltiplas dimensões? Poderão as relações, ainda que longas e estáveis, resistir à transparência? Poderemos viver sem segredos? Quereremos saber os segredos dos outros que nos são próximos? Mas talvez a questão mais importante seja: até que ponto a tecnologia, que nos oferece uma existência virtual, nos seduziu, nos fragmentou, nos permitiu uma intimidade sem corpo e se tornou depositária dos nossos segredos? Até que ponto nos perdemos na voragem da possibilidade de termos muitas vidas para além da vida real, nas quais podemos dar uma versão reduzida e depurada de nós?

O sucesso do texto original passa pela universalidade das questões e dos problemas que delas derivam, que podem, sem grandes adaptações, ser usados para caracterizar o modo de vida das classes médias de vários países pelo mundo fora. Mas também pela singularidade, pelo modo como afeta cada um dos espetadores.

A grande questão que se coloca a cada um de nós é: arriscaríamos jogar Le Jeu?