Opinião
Cinema | O Princípio da Incerteza
O detalhe e a verdade do tempo desapareceram. Quanto mais nos dizem que vamos ver, menos vemos
Ao longo das décadas o meu fascínio pelo princípio da incerteza de Heisenberg, longe de diminuir, aumentou. A ideia de que quando nos aproximamos de uma certeza, nos afastamos de outra. O limite de conhecer, de ver.
Mas se Heisenberg se debruçava sobre a incapacidade de conhecimento absoluto do mundo quântico, com o passar do tempo esta noção parece-me compatível com uma paleta infinita de áreas de trabalho.
Durante muito tempo, no prazer de ver um filme, teremos sido confrontados com a sua materialidade: a película que, ao ser manuseada e passada nos projectores, ganhava riscos, mutações, como um rosto que envelhece e nos dá a sua experiência de vida pelas marcas na pele. Quando mais vista, mais cicatrizes a película atrairia, como marcas do prazer desdobrado que teria proporcionado. E mesmo quando nova, pelo carácter analógico, a materialidade da película atribuía-lhe uma imprevisibilidade que dava a cada projecção uma dimensão única.
E um dia vi pela primeira vez um filme restaurado, em formato digital, numa sala de cinema em Londres. Era O Conformista, de Bernardo Bertolucci, de 1970. Visionado no início deste século, a experiência foi perturbadora.
Aí estava o filme, numa perfeição total de imagem e som, sem um único risco, sem uma única marca, um filme na época com mais de três décadas. O meu sentimento não foi de encanto mas de inquietação. Algo se tinha perdido e, se então não conseguia perceber o quê, hoje sei que terá sido a noção de temporalidade do objecto, as marcas da sua materialidade e, com isso, de algum modo, a ligação entre a projecção de cinema e a vida.
Ao voltarmos a ver O Conformista, mas desta vez sem as marcas do tempo, perdemos alguma da sua história, quase como se a carne se transformasse em plástico. O digital é mais sintético do que a película.
Vivemos agora num mundo de alta definição, mas os efeitos especiais, as maquilhagens, as cirurgias plásticas, a próstese, transformam tudo numa imagem de perfeição, sem marcas e sem defeitos - não só no cinema como na televisão.
Basta passarmos os olhos por programas realizados no final do século passado para ficarmos maravilhados com os momentos em que a câmara faz grandes planos na cara dos actores. Actores que estão impregnados de sardas, rugas, onde se notam borbulhas mal escondidas pela maquilhagem. A sensação de aproximação e voyeurismo é tremenda, a personagem do actor é carnal, vemos-lhe o detalhe das suas imperfeições, partilhamos a intimidade da sua história ao ver em nele as marcas do tempo. O contraste cresce quando passamos para os dias de hoje e, nas nossas televisões de alta definição, maquilhagem, operações plásticas e efeitos especiais, fazem desaparecer rugas e marcas.
A alta definição deu-nos a perfeição plástica. O detalhe e a verdade do tempo desapareceram. Quanto mais nos dizem que vamos ver, menos vemos. E confesso uma nostalgia tremenda por um grande plano onde se veja a temporalidade na película e no rosto do actor, as marcas da vida.
*Directora artística dos festivais utopia.co.uk e underscore.pt