Opinião
Cinema | Arco-íris e unicórnios
Tenho algumas dúvidas de que vamos ficar todos bem. Aliás, é muito pouco provável que fiquemos todos bem. Não se trata de pessimismo.
Trata-se de compreender que o copo está meio. E meio... é meio. Ainda a procissão vai no adro (se o estado de emergência a permitisse) e o medo do vírus lentamente transforma-se no medo da recessão.
Para quem tem a memória curta, a última foi há pouco mais de uma década e só recentemente a economia deu sinais de recuperação.
Vão ser tempos duros, que muitos já sentem na pele.
Profissionais liberais, artistas, recibo-verdistas crónicos, empreendedores que apostaram no momento de crescimento económico para se lançarem em iniciativas e uma série de gente difícil de catalogar que se espraia por atividades avulsas e ocasionais, no que muitos gostam de chamar a economia informal.
Vai tardar a que consigamos recuperar o sentimento de confiança e estabilidade que apenas há bem pouco tempo parecia relativamente consensual na sociedade. Seguramente mais tempo que a espera na fila para o drive-in das cadeias de fast-food, num sábado à noite de estado de emergência.
O reverso da medalha é que podem eventualmente advir coisas boas deste momento. Se tivermos capacidade de aprender com os erros do passado e aproveitar as oportunidades que surgem. Apoiar o comércio local, incluindo a restauração que luta para sobreviver em regime de take-away.
A solidariedade com os vizinhos, que neste momento não vão a lado nenhum, mas podem precisar de ajuda. Para quem ainda tem capacidade de o fazer, estar disponível para pagar discos e espetáculos online (a Netflix e HBO passam bem sem a vossa subscrição).
Compreender e respeitar que muita gente continua a trabalhar na rua, todos os dias, e que um agricultor não vale mais que um futebolista nem mais que um canalizador ou um caixa de supermercado. A crise quando apertar, será para (quase todos) e não é com cisões que se superará.
Nem com o colapso do sistema financeiro ou a interpretar mensagens ocultas da Natureza. Nesta ótica de aprender com os erros do passado, ou de pelo menos os reconhecer, sugiro-vos um filme disponível na RTP Play.
O documentário Acima das Nossas Possibilidades, assinado pelo grande Pedro Neves e integrado no Projecto Troika.
Deixo-vos a sinopse, porque não conseguiria dizê-lo melhor.
Neste documentário há gente. Gente viva que nunca viveu acima das suas possibilidades. Viveu, quando muito, abaixo de todas as possibilidades, sobrevivendo acima das probabilidades.
É gente que viu reduzidos os parcos rendimentos, viram-se ser despejados de quartos e casas. São pessoas de carne e osso que vivem o dia-a-dia na incerteza de uma refeição, de uma noite passada sob um teto firme.
"Vivemos acima das nossas possibilidades", disseram-nos. Bem-vindos à realidade.
P.S.: No momento em que lerem este texto, deveriam ter decorrido já duas sessões da 9.ª edição do hádoc – Cinema Documental em Leiria.
Tínhamos preparado um belo programa, que por força das circunstâncias viu as suas datas adiadas, mas fica a esperança de que, em breve seja possível tornarmos a juntar-nos dentro de uma sala de cinema (se calhar com máscara e uma embalagem de desinfetante das mãos no bolso, quem sabe), usufruindo da socialização e normalidade que, aos dias de hoje, parecem já coisas de um passado distante.