Opinião

Cinema | Jean-Luc Godard: o legislador do nosso tempo

25 mar 2021 00:00

Não há muito tempo (inícios do mês de Março), Jean-Luc Godard anunciou, durante uma entrevista para o Festival Internacional de Cinema de Kerala, que irá «terminar a [sua] vida cinematográfica — sim a [sua] vida de cineasta» depois de finalizar dois projectos

Nas suas contas é o adeus definitivo ao cinema depois de cerca de 60 anos no activo com uma filmografia extensa, controversa, variada e de olhos postos sobre o presente, refletindo-o através das imagens que o passado lhe legou.

Não é objectivo deste artigo fazer um balanço da sua obra por mais convidativo que seja devido àquela notícia.

Mas, quando chegar o momento de fazê-lo, o crítico incumbido dessa função que tenha a coragem de evitar a catalogação, o arrumo, a cronologia, já que a sua obra escapa aos limites em que se procure encerrá-la.

Ela resiste a qualquer linha cerimonial protocolar traçada, porque, como demonstram as suas diferentes transformações ao longo tempo, Gordard nunca teve a intenção de permanecer estagnado e de cristalizar a ideia de um certo tipo de cinema que tanto jeito dá àqueles críticos cuja forma de análise passa exclusivamente pela indicação da técnica ou do estilo.

Posto isto, recuperemos o seu mais recente filme intitulado O Livro de Imagem (2018), editado em dvd pela Midas Filmes, que lhe valeu a Palma de Ouro Especial no Festival de Cannes. É das suas mãos que nasce a reflexão à qual assistimos.

A montagem sempre foi para Godard uma forma de pensar o mundo. A sua voz divina, aforística, intermitente, sapiencial vai pontuando o caos de imagens garridas que ali estão «como um pesadelo escrito numa noite de tempestade».

A violência na história do cinema confunde-se com a própria violência na história do mundo. No seu monumento fílmico que é História(s) do Cinema (também editado pela Midas), Godard tenta lidar com as marcas da Segunda Guerra Mundial, sobretudo os campos de concentração, que foram uma ferida aberta e nunca sarada para a humanidade e, principalmente, para o cinema, que testemunhou tudo isso.

Essa ferida continua presente em O Livro de Imagem. No entanto, há outras bem recentes que não podem ser ignoradas uma vez mais pelo cinema: os massacres levados a cabo pelo ISIS e o conflito israelo-palestino. O mundo do médio oriente — desprendido do dinheiro, de essência filosófica — é motivo de reflexão do realizador, porque é o contraste do ocidente.

Porém, logo nos apercebemos que a «Arábia Feliz» não pode ser vista sem a guerra que lhe está à porta, esse eterno mal ao qual o homem não lhe escapa porque a guerra é «uma lei do mundo».

Godard não tem medo de ser político e aponta o dedo (a imagem simbólica que aparece no início e perto do fim) aos homens que hoje estão no poder.

«Acredita no que digo» diz-nos aquela voz divina, mas que, no final, se revela tão humana e falível como outra qualquer ao mostrar-se vulnerável através de um ataque de tosse.

É o mestre manifestando que o fim se aproxima?

Seja o que for, aqui temos Godard como o construtor do livro de imagem que contemplado e reflectido pode alterar a relação do homem com o próximo e com o mundo.