Opinião

Cinema | Nem todas as dunas são como divãs

19 abr 2022 09:30

O Dune de Villeneuve consegue a proeza de se aproximar bastante do texto do livro que lhe deu origem

“Deep in the human unconscious is a pervasive need for a logical universe that makes sense. But the real universe is always one step beyond logic”

Não tenho a certeza se ainda se pode dizer ficção científica. Pode? Espero que sim. Lamento, mas estou, naturalmente, a ficar mais velho e começo a ser assaltado por dúvidas que, um dia, já foram certezas. Talvez porque os Estrumpfes subitamente se tenham tornado em Smurfs ou talvez porque cada vez menos gente ache peculiar que os discos se oiçam em modo aleatório, no Spotify. No outro dia apercebi-me que a República Checa passou a ser Chéquia e a Moldávia, Moldova. São pequenas coisas, mas deixam-me baralhado e preciso de algum tempo para recuperar o equilíbrio.

Onde ia? Ah, certo… Ficção científica. A incerteza do futuro e a fantasia da tecnologia são pontos de partida poderosos para contar histórias cuja mensagem seria demasiado óbvia e potencialmente menos impactante sem esta (des)contextualização particular. Porque, no fundo, temos alguma dificuldade em ser confrontados com o lado mais negro da nossa condição humana e ao relativizá-lo, transportando-o para uma realidade alterada, distópica até, criamos uma almofada emocional para lidar com a insegurança de sermos mortais (com todo o amor, violência, dor, alegria, crueldade e compaixão que isso comporta).

São vários os autores que dominaram a arte de contar sérios pedaços da grande história da natureza humana sob a forma de narrativas mais ou menos surreais. A lista é imensa, mas Júlio Verne, Isaac Asimov, Phillip K. Dick, Arthur C. Clarke, Stanislaw Lem e Carl Sagan seguramente terão de fazer parte dela. Bem como Frank Herbert, cuja obra mais referida, Dune, lhe trouxe sério reconhecimento. A adaptação ao cinema de contos e romances destes e outros autores, acrescentou-lhes uma dimensão gráfica e visual que sublinham a sua importância.

Vem este texto, portanto, a propósito da mais recente adaptação ao cinema de Dune, o épico de Herbert que Dennis Villeneuve transformou no indiscutível vencedor das categorias técnicas dos últimos Óscares. Já em 1984 David Lynch tinha adaptado este mesmo romance ao cinema, mas (que me perdoem os puristas e os fãs de Lynch) conseguiu transformá-lo num filme chatíssimo e sem dimensão. Escuso-me aqui a uma guerra de realizadores e fãs de cinema dizendo que o Blade Runner 2049, a sequela de outro clássico da ficção científica que Villeneuve realizou em 2017 foi tão seco e árido de ideias como o planeta deserto que retrata agora em Dune.

Dividido em duas partes, a segunda com lançamento agendado apenas para 2023, o Dune de Villeneuve consegue a proeza de se aproximar bastante do texto do livro que lhe deu origem, o que, quando as histórias valem a pena ser contadas porque são universais – e por isso têm um bocadinho de cada um de nós dentro delas – é suficiente para resultar num bom filme.