Opinião

Cinema | Os Outros Somos Nós

9 ago 2020 20:00

Faleceu Alan Parker, cineasta cujo sucesso é sincopado pela controvérsia na percepção da sua obra. Um dos seus grandes sucessos de bilheteira foi Midnight Express (O Expresso da Meia-Noite), de 1978.

Baseado na história (verídica) de Billy Hayes, o filme leva-nos pela emoção de acompanharmos o percurso de um jovem americano preso na Turquia quando tenta contrabandear haxixe para os Estados Unidos. 

É uma narrativa que nos confronta com a dureza do sistema prisional turco, vivida durante anos pelo protagonista, que finalmente consegue escapar numa fuga dramática.

Pelo meio do sucesso de bilheteira, vozes, que incluíram a do próprio Billy Hayes, condenaram o vilificar dos turcos, na falta de perspectivas diferentes sobre o país e os seus cidadãos: o americano contrabandista mártir e o sistema turco que o tortura. 

Trata-se também de pensarmos como se faria a história se tivesse sido um jovem turco a tentar fazer contrabando de drogas em território americano, o que lhe aconteceria se tivesse sido apanhado pelo sistema prisional dos EUA. 

O exótico, bem como o cruel, estão sempre do outro lado, até percebermos que afinal andam por cá, em nossa casa.

Como contraponto, podemos lembrar o filme Lisboetas, de Sérgio Tréfaut (2004), que aponta a câmara à variedade de comunidades que vivem em Lisboa (brasileiros, ucranianos, russos e africanos oriundos das antigas colónias portuguesas), mostrando o modo como sistematicamente sofrem injustiças infligidas pelo sistema português, desde a remuneração a questões mais banais. 

Observamos os rituais religiosos que trazem consigo como muçulmanos ou cristãos ortodoxos.

Vemos as crianças que, nascidas já em Portugal, só têm memórias deste país. Estão aqui, vivem aqui, serão mais como nós ou como os outros?

Num país ainda tão dividido em relação às comunidades ciganas, é sempre importante relembrar o caso de Leonor Teles, realizadora de Balada de um Batráquio (2016), filme vencedor de inúmeros prémios (incluindo o Urso de Ouro do Festival de Berlim, para a melhor curta).

Neste filme, Leonor Teles ataca de frente a tradição de se colocar um sapo à entrada de casas e lojas para afastar os ciganos, o sapo de louça como símbolo de um racismo persistente e enraizado.

Uma ignorância e um desrespeito pelo outro que ainda persistem, tomando a forma de tradição. 

Leonor Teles é portuguesa e de origem cigana. O seu filme não se debruça sobre os outros mas sobre a sua própria origem. 

Sérgio Tréfaut é, por sua vez, um realizador luso-brasileiro.

Ao filmar Lisboetas, os que, chegados de outras paragens, escolheram Lisboa como sua casa, está também a contar a sua história. 

Do mesmo modo que estes cineastas portugueses sabem que, de alguma forma e por vezes, se encontram na pele do outro, é preciso que a sociedade portuguesa reconheça que o outro somos nós.