Opinião

Cinema | Retouch – o silêncio e o cinema iraniano

27 jun 2025 08:05

Desde Abbas Kiarostami — mestre do olhar ético e da simplicidade poética — que o Irão nos habituou a obras que tocam o essencial da condição humana

Tendo em conta a conjuntura política actual, resolvi trazer a estas páginas um bocadinho de food for thought. O cinema iraniano é, para muitos, um território exótico e distante, frequentemente abordado com preconceitos ou ideias feitas. No entanto, poucos países souberam filmar a humanidade com tanta delicadeza e verdade.

Desde Abbas Kiarostami — mestre do olhar ético e da simplicidade poética — que o Irão nos habituou a obras que tocam o essencial da condição humana. Basta lembrar o magnífico filme Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), uma pequena fábula sobre responsabilidade e amizade, passada entre cadernos escolares e colinas poeirentas, que deveria ser de visionamento obrigatório para todos os que moram neste planeta. Ali, como em muito do cinema iraniano, o gesto mais simples carrega o maior dos significados.

É com este legado que surge Retouch, de Kaveh Mazaheri. Mas onde Kiarostami filmava a infância com esperança, Mazaheri expõe a vida adulta com um realismo cru e implacável. A protagonista, Maryam, vê o marido sofrer um acidente doméstico. Em vez de o ajudar, observa-o até à morte, numa sequência tensa e silenciosa que nos confronta com os limites da moral e do instinto.

O gesto de Maryam — ou a sua ausência — é mais do que uma escolha: é o grito mudo de uma mulher presa numa sociedade onde a repressão e o conformismo ditam regras não escritas. O realizador, consciente do que pode ou não mostrar, constrói um retrato poderoso da alienação doméstica, sem jamais cair no julgamento.

Kaveh Mazaheri nasceu em Teerão em 1981. Começou a sua carreira como crítico de cinema antes de se dedicar à realização, assinando várias curtas-metragens premiadas. Retouch, de 2017, valeu-lhe mais de 80 prémios internacionais e afirmou-o como uma das vozes mais promissoras do novo cinema iraniano. Desde então, tem desenvolvido também longas-metragens, como Botox (2019), mantendo o olhar atento sobre as tensões sociais e íntimas do seu país, focando o seu trabalho nos desafios das mulheres.
Retouch é um filme que incomoda porque nos obriga a olhar para dentro. E, como já disse Mazaheri, muitos espectadores riem, hesitam, e acabam por confessar: “eu talvez fizesse o mesmo”. Essa identificação, desconfortável e profunda, revela a força do cinema quando se torna espelho.

Num mundo saturado de ruído e distracção, vale a pena parar 20 minutos para ver este filme. Está online, gratuitamente, ao alcance de um clique, em várias plataformas. Que seja um primeiro passo — não apenas para descobrir um cinema mais humano, mas para escutar as vozes que tantas vezes silenciamos, dentro e fora de nós.