Opinião

Cinema | Um 007 que enfrenta o passado

4 fev 2022 08:57

Este último James Bond de Daniel Craig abre-se à flor dos sentimentos e torna-se mais pessoal

007: Sem Tempo Para Morrer (2020), realizado por Cary Joji Fukunaga, é provavelmente um dos únicos da saga 007 a oferecer um desfecho pomposo ao seu James Bond. Quem não viu o 007 Spectre (2015) certamente se sentirá um pouco confuso com alguns momentos, pois este filme mais recente está intimamente ligado ao prévio. Mas como quase todo e qualquer filme de ação basta embarcar na aventura para dela lhe aproveitar a montanha russa de emoções (expressão que tanta polémica tem dado no mundo cinematográfico).

A atenção dada aos aspectos visuais com uma paleta de cores bastante rica, o que é surpreendente, uma vez que nos últimos anos da indústria cinematográfica se tem assistido a alguma repetição na colorização, com os seus filtros monocromáticos ou duocromáticos, acaba por mostrar que o mundo não tem de ser tão sério, pobre, podendo ser capaz de uma extravagância visual que é o sintoma de despedida da era de Daniel Craig. Assim o é também para os dois principais pores-do-sol (o inicial e o final) plenos de significado, as inúmeras viagens entre diferentes lugares, que permitem ver múltiplas facetas do protagonista, a utilização de uma plêiade de atores coadjuvantes. Sobre esta última categoria, Ana de Armas (Paloma) é a mais memorável e divertida, que surge na sequência de Cuba para insuflar uma nova energia ao filme, mas Lashana Lynch (Nomi, atual 007) proporciona uma contenda desafiante ao papel de agente secreto.

Este canto do cisne é inevitável para uma personagem que se tem adaptado às exigências do público moderno, como quem afirma que o tempo dos heróis que passam incólumes já não existe. Embora Craig não deixe de encarnar o mítico protagonista, em 007: Sem Tempo Para Morrer encontramos alguém que procura seguir com a vida e que parece lidar bem com o fim do seu tempo. “007 é apenas um número”, atira Craig, tentando despir o peso que está associado ao número. E se 007 é apenas um número, James Bond é também apenas um homem comum que não consegue fugir ao passado.

O vilão Lyutsifer Safin, interpretado por Rami Malek, é talvez um dos pontos mais esquisitos do filme, não só pelo momento em que aparece de facto na história (já a mais de meio), como também pelo simplista objetivo de destruir o mundo à la vilões de super-heróis. É impossível, claro, não deixar de interligar a proliferação do vírus dos nanobots com a época atual da pandemia. E se queremos salvar aqueles que mais amamos, temos, tal como James Bond, de fazer sacrifícios.

Este último James Bond de Daniel Craig, em que o actor foi encontrando na postura, no silêncio, na impassibilidade a força da personagem, abre-se à flor dos sentimentos e torna-se mais pessoal, cuja prestação de Léa Seydoux, enquanto Madeleine Swann, variando entre a aflição, perda e indiferença, oferece um vínculo credível à relação dos amantes. 007: Sem Tempo Para Morrer é capaz de uma poesia visual e um bailado de câmara em suficientes sequências para não ser recordado como um falhanço, que, mais do que a história, é o que fica para o futuro; e concede a Daniel Craig um pôr-do-sol redentor para o seu legado.