Opinião
Desconseguir a vida
Chegamos ao ponto em que somos intolerantes connosco próprios, como indicam os saldos bancários dos coachs, terapeutas, psicólogos e psiquiatras
Andamos todos depressa demais, colocamos desafios em tudo, sentimo-nos sempre em falha para com o mundo. E mesmo que gastemos horas a ver reels ou stories nas redes sociais, há um sentimento permanente de estarmos a falhar. Uma vertigem incessante que nos persegue. O trabalho é sempre aquém do que desejamos. As relações são sempre menos do que vemos nos filmes. A relva do vizinho é sempre mais verde e viçosa. A cerveja do outro é sempre mais fresca.
Enquanto adultos, construímo-nos com uma permanente insatisfação. O problema é quando ficamos bloqueados, sem percebermos bem o que se passa. Quando chegamos à parentalidade, essa sensação de falhanço torna-se avassaladora. Queremos ser sempre mais do que aquilo que os nossos pais foram para nós. Compramos a roupa 100% de algodão que custa o dobro de uma outra peça que tinha só tinha 90%.
Os bebés recém-nascidos são carimbos sociais de boa cidadania que ostentamos em carrinhos comprados a prestações. Depois, os filhos crescem e a obsessão é sermos sempre mais. Mais desportos, mais atividades, mais explicações, melhores escolas, melhores notas. E, no fim, transferimos para as gerações que nos vão suceder o peso da insatisfação que nos impede de sermos felizes. Somos adolescentes a criar outras crianças, também elas adolescentes a partir dos seis anos de idade.
Com o medo de falhar, a paranoia de não cumprirmos os desígnios sonhados ou vendidos por um qualquer influenciador digital, que nos acompanha mais na cama do que a pessoa com quem dormimos de facto. E mesmo para quem tem uma visão mais alternativa da educação ou da vida, sejam preocupações ambientais ou religiosas, a falta de tolerância torna-se a regra.
A nossa própria intolerância a quem é diferente de nós começa com grandes temas e depois alimenta-se de pormenores, quase todos insignificantes. E tornamo-nos intolerantes com quem nos é mais próximo. A quantidade de idosos deixados como panos velhos nos corredores dos hospitais é um símbolo da nossa pós-modernidade falhada.
Chegamos depois ao ponto em que somos intolerantes connosco próprios, como indicam os saldos bancários dos coachs, terapeutas, psicólogos e psiquiatras. Tudo porque não conseguimos conviver com o falhanço. O falhanço é a regra, não a exceção. E temos de o aceitar. Nascemos de um orgasmo (preferencialmente de duas pessoas), de uma combinação mais rara que o Euromilhões: um homem tem entre 80 a 300 milhões de espermatozoides por ejaculação e uma mulher nasce com cinco milhões de óvulos.
Podemo-nos permitir a falhar algumas vezes e a não triunfar noutras. Seja na educação dos filhos – que têm de aprender que a vida não é um post de rede social -, seja na nossa própria vida. Basta atravessarmos geografias e vermos o quão afortunados somos no plano global. Temos a vida que queríamos? Claro que não. Ninguém tem. Somos seres insaciáveis e insaciados. É isso que nos faz melhorar. Mas isso não nos pode cegar, sob risco de nos esvaziar a alma.
Texto escrito segundo as regras do novo Acordo Ortográfico de 1990