Opinião

Dúvidas de Natal

22 dez 2022 23:21

“Se calhar na minha casa é diferente, porque os meus pais não mentem nunca”. Todos os anos, o Pai Natal era visto de supetão pelos miúdos que se juntavam na Consoada.

Gonçalo estava cheio de dúvidas sobre o Natal. A avó sempre lhe disse que quem dava as prendas era o Menino Jesus. Para a família, era o Pai Natal. Mas Gonçalo sempre achou estranho o ritual das prendas porque tinham sempre etiquetas e coisas escritas. E os primos, tias e padrinhos traziam sacos de embrulhos para outros adultos.

As palavras Pai Natal e compras confundiam-se quase sempre nas conversas dos mais velhos. Gonçalo sabia que havia qualquer coisa de estranho, mas os pais nunca mentiam. Os pais diziam sempre a verdade.

Há uns tempos, confrontou-os e eles ficaram embaraçados e estranhos, mas reafirmaram que o Pai Natal existia. Agora que tinha entrado no primeiro ano, Gonçalo já sabia juntar letras e contar números. Mas quando falava com os amiguinhos da escola sobre estas dúvidas, muitos riam-se dele. “Não há Pai Natal e nem Menino Jesus. São os pais que compram”.

Gonçalo calava-se e pensava para dentro. “Se calhar na minha casa é diferente, porque os meus pais não mentem nunca”. Todos os anos, o Pai Natal era visto de supetão pelos miúdos que se juntavam na Consoada.

Meio de fugida, um vulto vermelho distante, um ‘Ho! Ho! Ho!’

No ano passado, Gonçalo e o irmão mais velho correram atrás do Pai Natal e conseguiram distinguir claramente o tufo branco do barrete. Gonçalo já sabia que essas aparições seriam sempre a correr e aceitava as regras do jogo.

Afinal, existiam muitos meninos no mundo e muitas prendas para entregar em pouco tempo.

Na manhã da véspera de Natal, Gonçalo abriu uma gaveta junto à garrafeira do pai e viu um fato de Pai Natal. Desconfiou e tentou lembrar-se de uma coisa que um primo lhe havia dito há uns anos. “O tio Tiago nunca está na sala quando vem o Pai Natal. É porque o Pai Natal é ele mascarado”.

Este ano, intrigado e curioso, Gonçalo teve uma ideia e foi ao estojo de marcadores da escola que teimava em esconder na mochila sempre desarrumada.

Na véspera de Natal, como habitual, os miúdos deixaram as bolachas e o leite para o Pai Natal.

Depois do jantar e de muita brincadeira, bateram à porta, ouviu-se um ‘Ho! Ho! Ho!’ e os miúdos correram numa vertigem pela escada do prédio.

Gonçalo foi o primeiro e ainda conseguiu ver nitidamente o vulto de costas a fugir escadas abaixo, enquanto os pais gritavam de cima para que regressassem.

Desta vez tinha a certeza quem era o Pai Natal. Tudo porque o G maiúsculo do seu próprio nome, pintado a marcador fluorescente no traseiro do Pai Natal, denunciava que o fato, afinal, era o mesmo que estava na garrafeira. E, triunfal, regressou a casa pronto para denunciar o impostor.

Nesse instante, a Marta, sua prima de dois anos que ainda lutava para deixar a fralda à noite, olhou para ele, ansiosa e sôfrega.

“Viste-o?” Ali, com o peso da responsabilidade dos seus seis anos, Gonçalo olhou para a prima e esqueceu-se da guerra que os dois haviam tido instantes antes porque ela lhe tinha destruído um lego que estava já montado. “Sim, vi. Ele existe mesmo”. E sorriu para a pequenita.