Opinião

Em latim "Mater"

14 out 2021 15:45

Catarina filma também de forma comovente a saudade e o seu apaziguamento através dos sinais e da memória

Um homem, uma mulher. Portugal, anos 50. Um encontro. Uma família. Seis filhos. Ele no mar. Ela em terra. Uma relação feita de cartas e visitas a casa, da construção de um lar e da educação de filhos fortes. De fé e de árvores.

Beatriz, a mulher, morre subitamente em terra. Henrique regressa do mar. A presença de «Triz» perdura nos objectos, nas plantas, nas árvores, na casa, na memória não dita dos filhos que se metamorfoseiam «mutilados» perante a ausência da mãe.

Duas gerações depois, Catarina, neta de «Triz» face à decisão de Henrique, o avô, de vender a casa que acolhera a família e de queimar intimidade entre ambos encerrada nas cartas que trocou com «Triz», decide reconstituir sob a forma de filme a vida da avó que não conheceu e da qual é um dos ramos.

Tem longas conversas com o pai e os tios cujos relatos deixam espaços em branco que ela não consegue preencher factualmente. A mãe de Catarina já não vive. Não morreu subitamente como a avó, mas morreu antes de cumprir o seu tempo de mãe.

Os diálogos com a família passam a ser conversas sobre as perdas de alguém a quem se amou muito. Aquilo que pretendia ser inicialmente um projecto de documentário passa a ser um retrato comovente de uma família narrada pelos seus próprios membros e reinventado pela memória que cada um guarda da sua vivência com «Triz».

Catarina vai reunindo imagens, recordações, objectos e sons que vão compondo a história da avó (a sua própria história) numa sucessão de textos e imagens belíssimas que se fundam mais na sua formação em Belas Artes e numa rara sensibilidade para a cor, a composição e a luz, do que na sua ainda curta experiência de realização.

Quadro a quadro, dando forma à memória ou revelando-a em detalhes íntimos, a realizadora recompõe-se das suas perdas e abre a porta a um diálogo do espectador com a sua própria experiência de ausências passando assim do singular ao universal.

A Metamorfose dos Pássaros é uma homenagem profundamente poética, delicada e emocionalmente honesta à família de Catarina Vasconcelos, mas ao sê-lo é também um filme sobre o processo de luto e o desenho familiar que lhe sobrevive, circunstância mais tarde ou mais cedo comum ao percurso de todos nós.

Numa das cenas mais belas do filme, Catarina, que se representa a si própria, algures num ponto que aproxima a terra do céu, procura reerguer, sem sucesso, uma árvore tombada restituindo-lhe verticalidade na tentativa de a devolver à vida. Convocando a ideia irreversibilidade do tempo, Catarina filma também de forma comovente a saudade e o seu apaziguamento através dos sinais e da memória.

No som final que encerra o filme, a realizadora imortaliza a voz de «Triz» que conseguiu recuperar de um vinil que avó gravara para levar o som dos filhos a Henrique quando estava em expedições em alto-mar. Uma voz vivíssima a cumprir-se na alegria da maternidade.

Numa das entrevistas que deu acerca desta sua primeira longa-metragem amplamente premiada, Catarina Vasconcelos definiu A Metamorfose dos Pássaros como um filme «sobre a mãe do meu pai. A minha mãe. As mães. As mães das mães. As mães das mães das mães.»

Uma voz vivíssima que perdurará a cumprir-se na alegria da maternidade