Opinião

Família, precisa-se

8 jun 2023 16:20

O corpo é o lugar onde o “eu” acontece, onde se encontra e conhece o “outro”, onde se esconde (às escancaras) ou claramente se revela a descoberta

Para além de outros espaços, e planos de estudos, ensino dança Criativa em Jardins de Infância da rede pública do concelho de Leiria, no projecto da CML de incluir sessões semanais de dança (e de música) nas aprendizagens desta faixa etária.

A dança Criativa é um estímulo das competências criativas das crianças, proporcionando-lhes tanto a descoberta de si próprias, do outro, e do Mundo, como um modo de manifestar emoções, sobretudo as que se apresentem mais intensas e difíceis de comunicar verbalmente.

O corpo é o lugar onde o “eu” acontece, onde se encontra e conhece o “outro”, onde se esconde (às escancaras) ou claramente se revela a descoberta, o aborrecimento, o espanto, a tristeza, a angústia, a raiva, ou a alegria; um corpo ainda translúcido e revelador do ser que pensa e sente, porque ainda liberto dos códigos que um dia lhe trarão alguma opacidade.

E porque o corpo é o lugar onde o ser acontece, todas as aulas começam com eles e eu sentados no chão, em grande círculo, ouvindo o que cada um tenha, ou queira dizer, numa escuta colectiva de atenção ao outro. É um momento importante que ao longo do ano vai criando relação, cumplicidade e muito afecto entre mim e eles, e onde podem acontecer revelações simples, como uma refeição fora, uma festa de anos, ou a queda dos dentes, relevantes, como a morte de um animal de estimação ou o nascimento de um irmão, ou transformadoras, como a separação dos pais, a morte de avós, ou tristezas fundas. 

Na aula a seguir ao Dia da Criança, os relatos dos festejos familiares chegaram na sua totalidade com informações sobre os presentes mais ou menos dispendiosos que tinham recebido, alguns acrescentando também uma ida aos hambúrgueres ou às pizzas.

O Pedro, menino inteligente, de vocabulário desenvolvido e com acessos esporádicos de ternuras, mas travesso, extremamente desafiador e de difícil conciliação com os desejos e vontades dos outros, fez a descrição do carro com comando à distância; à minha pergunta sobre se já conseguia comandá-lo sem o deixar chocar, respondeu que sim, porque já tinha prática de outros.

Uns momentos depois chegou a vez do último menino do círculo e o Edmundo, com sorriso suave, contou que não tinha saído ou tido presente; que tinha ido para casa brincar com o irmão e com o cachorrinho, e que o pai também tinha ficado em casa.

Na minha vez de falar, disse que essa seria a minha escolha para o meu dia da criança, se o tivesse, porque ter um presente é bom, mas há outras coisas muito especiais e importantes… Ainda não tinha terminado a frase quando o Pedro, crescendo no seu corpo de seis anos, de punhos cerrados, e corando numa mistura de raiva e aflição, me interrompeu quase gritando, “mas a minha cadela morreu, a minha irmã não gosta de mim, e os meus pais nunca estão disponíveis!”. E chorou.

Mais tarde, a dança que propus livre, como a circunstância pedia, tomou conta do corpo e dos pensamentos dos meninos. No corpo do Pedro, a tristeza pôde ver-se em movimento.