Opinião
FERNANDO PEÇONHA
Hoje, decidi fingir que trabalhava na Porto Editora.
Por isso eu tomo sumo, comprei no Continente,
Sabe-me tão bem este momento,
Moro num brutal apartamento
e ver passar as pessoas deixa-me contente.
Saí de casa, tomei um café, comi uma sandes e engoli os comprimidos. Dei uma vista de olhos pelos jornais e fui picar o ponto. Daí a uns minutos já estava á secretária.
Curto estes openspaces. Dá para ver as pernas à Sandra e ouvir as conversas do Manuel. Está quentinho, muito melhor do que em muitas escolas. Safa, ser professor... Merda, está-se mesmo bem, que sorte.
Antes de pegar neste manual de Português para rever o chato do Peçonha fui ao Whatsapp: o meu grupo Cenas Maradas estava farto de me enviar notificações e aquilo estava cheio de gifs e fotos e vídeos.Um fartote. Vi a pila gigante daquele russo de bigode, o bikini da Sandra no Verão - tão boa- entre outras merdas que me fizeram rir.
Já eram quase 11.30, caraças, deixa-me lá trabalhar um bocado. O quê?
- Ó Sandra, chega lá aqui ( e ela chega-se bem perto). Vê lá isto que está aqui escrito, já que o Peçonha é o teu querido
- Mas, eu gosto é da Mensagem.
- Ai é? Então lê lá esta cena.
“Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas”
“E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o!
— / Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada”
- Pois, Álvaro de Campos. Só podia. E os colegas ensinam estas cenas? Orgias e sexo em automóveis? E meninas de oito anos a fazerem broches, e ele, o Pessoa, ama isto?
Tens razão. Vamos levar lá acima ao cientifico, okay? Onde é que almoças hoje?
- Pronto, já está. Fazemos assim: mete-se um pontilhado onde estavam as asneiras. Depois, o colega decide se as diz ou não. Afinal, está bem pensado, assim agrada-se a todos e prontos já não temos de responder aos pais que acham aquilo uma ordinarice e com razão. O quê, nunca ninguém se queixou disso? Só daquilo dos livros pó menino e pá menina, que parvos também. E o bonequinho vestido de Hitler para representar a Alemanha no livro de estudo do meio? Até achei fofo, uma beca revisionista. Olhem, bom ano para vocês!
- Viram os jornais? Agora somos censores? A sério? Que parvos da merda. Olha, vou-te aí ditar uma nota justificativa okay? Depois manda para as televisões e para os jornais: isto não é censura, é omissão, okay? Afinal se estivéssemos a censurar um texto, não dávamos hipótese de escolha, não acham? Aliás, até pela Lei, não podemos publicar coisas truncadas, que violam a integridade da obra. Mas espera, olha nem digas isso, okay? Vamos só dizer essa cena da escolha e da...como é que era... precaução pedagógica? Okay, envia lá isso e traz-me aí a Lolita, do Nabokov, o Cármides, do Platão e o Marquês de Sade, caraças, não me lixem, que, hoje, vai tudo a eito.
*músico, líder dos Moonspell