Opinião
Inverno
O céu fechou-se ainda mais e a cidade em vez de me expulsar mantém-me parada numa fila de carros
Segurou-me o rosto por um breve segundo e esperei que nesse momento conseguisse obter respostas.
Qual a dimensão do sofrimento, até onde poderia ir o perdão se me recusasse a ver, a aceitar. Mas não passou disso.
O dia em que chego ao consultório está escuro e a cidade parece expulsar-me. Chove e os carros entre os quais circulo devolvem-me a antipatia da estação do ano.
Ao meu lado ele repete incessantemente a mesma frase - “esta cidade tem cada vez mais gente...”, respondo-lhe que sim, que à hora de ponta tudo se complica e a que a cidade parece não conseguir comportar tantas pessoas. Concorda de novo e prosseguimos até ao hospital.
À entrada, o rosto fechado da recepcionista reclama por motivos burocráticos e aponta para a sala de espera com um gesto hostil.
Agradeço-lhe e o meu olhar não se desvia dele com medo que escorregue no chão molhado. Adormece, entretanto, na cadeira onde está sentado.
Consulto os emails do trabalho que ficou por fazer enquanto verifico o ecrã da entrada com receio de perder a vez da consulta. Chamam-nos por fim. Um número. Não um nome.
Entro no consultório com ele pelo braço. Saudamos o médico e carrego comigo a esperança de que sairei dali com certezas.
Testemunho a conversa introdutória e só penso em desaparecer. Não ver. Não aceitar. Entreolhamo-nos, eu e o médico que lê tudo o que me passa pela cabeça - o embaraço, o cansaço e as perguntas.
Retoma o foco no discurso desarticulado e parte com ele para a sala de enfermagem. Fico sozinha no consultório e só penso em desaparecer, não ver, não aceitar.
O médico interrompe-me a ousadia ao entrar de novo enquanto o enfermeiro prossegue com o tratamento. Confirma-me a surpresa com o agravamento da desarticulação do discurso e segura-me em silêncio o rosto.
Tento iniciar o interrogatório ao qual parece querer esquivar-se, mas o enfermeiro regressa com ele e ficamos por ali.
Trocamos referências de livros para aligeirar o ar denso do consultório e falamos de uma recente injustiça de que foi alvo na sua carreira médica.
Pago a consulta à recepcionista que volta a resmungar enquanto tento gerir o medo que ele escorregue nas lajes da entrada.
O céu fechou-se ainda mais e a cidade em vez de me expulsar mantém-me parada numa fila de carros.
Entre as perguntas dele que se repetem durante o percurso que demora, recapitulo o nome de todas as doenças que conheço e o vocabulário de que me armo quando entro num consultório na expectativa de obter respostas.
Mas o discurso de que me muno não conduz à explicação que parece estar naquele breve segundo em que o médico me segurou o rosto, me olhou nos olhos e onde nem deus nem a ciência parecem ter lugar.
Confirmo novamente que a cidade está cada vez mais populosa à chegada ao destino. Faço o trajecto de volta à cidade que continua a expulsar-me.
Enterro a cabeça nos livros e detenho-me aqui “é no tocar de um corpo arruinado que se experimenta uma particular emoção física, um sentimento brutal que ultrapassa muito a piedade ou o afecto: na palavra do escritor, é a ternura egoísta do homem para com o homem.
Os antropólogos descobriram que não há criatura no mundo que exija mais amor do que o homem e nenhuma outra está menos apta a sobreviver sem ele. Mesmo quando a sobrevivência já não é possível, é nosso dever nunca o esquecermos.”
Apesar das interrogações insistirem em não me abandonar é naquele breve segundo, onde nem deus nem a ciência parecem ter lugar, que suspeito residir a resposta.
Ou a certeza de que ela não existe.