Opinião

Cinema e TV | Isto é uma coisa a ver: Fátima

25 mai 2023 11:32

Na ausência de santidade, é o perdão, como valor maior, o único capaz de sarar as feridas e garantir a fé no outro e na humanidade

Escrito e realizado por João Canijo, o filme Fátima foi lançado nos cinemas em 2017, cem anos depois das aparições marianas. Disponível na Amazon Prime Video e na RTP Play, o filme narra, em tom de documentário, a peregrinação de um grupo de mulheres que, durante nove dias, percorrem os quatrocentos quilómetros que separam Vinhais, em Trás-os-Montes, do Santuário de Fátima, onde a viagem termina.

O filme conta com a extraordinária interpretação das mulheres de Canijo: Rita Blanco, Anabela Moreira, Cleia Almeida, Márcia Breia, Vera Barreto, Teresa Madruga, Ana Bustorff, Teresa Tavares, Alexandra Rosa, Íris Macedo, Sara Norte, que se dividem em peregrinas e mulheres de apoio que conduzem a carrinha e a caravana onde todas dormem.

Estas, como as mulheres de outros filmes do realizador, não são mulheres urbanas, mas mulheres rudes, de língua solta e às vezes afiada, mulheres que fazem o que têm de fazer porque têm de fazer, que sofrem, choram e resistem, para continuar no dia seguinte, na peregrinação como na vida, curando como podem os males do dia anterior. Da fé que as move, pouco ou nada ficamos a saber. Tal como não sabemos das promessas que cumprem ou dos pedidos que fizeram a Nossa Senhora. A peregrinação parece ser pouco mais do que um pretexto (como foi a pesca em É o Amor, de 2013) para explorar a matéria-prima mais básica de que somos feitos (ou, com mais propriedade, feitas) criando um contexto capaz de levar a extremos a dor individual e, assim, testar a coesão e solidez do grupo.

O filme, que o realizador assume como um road movie, é feito de planos gerais, que mostram a pequenez das mulheres perante a dimensão da estrada a percorrer, e de grandes planos de sofrimento individual, tendo como banda sonora os cânticos religiosos que vão sendo entoados (em que se inclui Grândola Vila Morena), acompanhados do som de carros e camiões e do ritmo dos passos na gravilha.

A câmara avança na estrada lado a lado com as mulheres, acompanhando o cansaço de cada uma, o desespero crescente pela chuva, pelo calor, pelas bolhas nos pés, pelas ancas inflamadas, pelos joelhos inchados, pelas cãibras, quebras de tensão, enjoos, dores. Mas é nas dinâmicas de grupo que o filme acontece. Acontece nos banhos coletivos que mostram a nudez sem pudor, nas pausas para descanso ou almoço, na noite que passam nas carrinhas. Aqui, Canijo usa frequentemente como dispositivo um desencontro entre imagem e som. De fora de cena chegam conversas que se entrelaçam nas que o espetador vê a acontecer, comentários, feitos em surdina ou para serem ouvidos, sobre os comportamentos e feitios das outras, revelando a tensão que se vai avolumando à medida que o tempo e o cansaço avançam. A chegada de um homem ao grupo vai abalar ainda mais a coesão e criar uma cisão entre as mulheres. Os conflitos transformam-se em feridas tão abertas como as dos pés e igualmente difíceis de curar. Como diz Carla (Sara Norte), a condutora ateia do carro de apoio, vocês são todas beatas, perdoar é um dos vossos conceitos, ou lá o que é.

No final, cumpre-se o perdão ao som de ave-marias rezadas no santuário. Na ausência de santidade, é o perdão, como valor maior, o único capaz de sarar as feridas e garantir a fé no outro e na humanidade, representada na imensa multidão de fiéis reunidos no recinto de Fátima, iluminados pelas velas que empunham e com que o filme encerra.