Opinião

Letras | A Gorda, de Isabela Figueiredo

1 jun 2023 09:28

A leitura tem de ser torrencial para acompanhar a escrita igualmente torrencial com que a narradora nos conta a sua vida

O livro saiu em 2016, mas aquele título A Gorda sempre me afastava dele. Preconceito? Medo do dramatismo? Da autocomiseração? Talvez. Até que um bom desconto no preço me convenceu a trazê-lo comigo. E li-o “de enfiada”. Trata do preconceito? Sim, muito! É dramático? Muito, mas sem dramatismos. Mas de compadecimento nada tem!

A narrativa, feita em primeira pessoa pela personagem principal (Maria Luísa), assenta em três grandes pilares por ela vividos e que se entrelaçam: o estigma da obesidade, o retorno das ex-colónias e uma história de amor não correspondido – é este último aquele que mais fundo crava a dor na protagonista.

A leitura tem de ser torrencial para acompanhar a escrita igualmente torrencial com que a narradora nos conta a sua vida embora sem qualquer unidade de tempo ou de ação. Os episódios vividos desde os seus doze anos até aos seus cinquenta e tal, bem como as várias personagens que a marcam e que ama e/ou odeia, aparecem algo emaranhados nos correntes monólogos interiores que se nos deparam. Há, porém, uma unidade interna na narrativa marcada pela indomável força interior de Maria Luísa e tendo como centro fulcral a casa onde vive, onde se protege e aonde sempre regressa – a casa que os papás compraram em Almada com as economias de uma vida de trabalho em Moçambique quando de lá regressaram em 1985.

Curiosamente, cada capítulo do livro tem o nome das divisões da casa: desde a “porta da entrada” até ao “hall”, passando por todas as restantes, todas elas marcadas pela presença da mamã, dona de casa exímia, que as decora com as mobílias “acumuladas em Cabora Bassa” e as plantas que despachou por barco, e do papá, um colonialista ferrenho. É a partir de cada divisão da casa que, num emaranhado temporal e emocional muito bem conseguido, e com sentimentos muito contraditórios, nos são apresentadas todas personagens que cruzam a vida de ML bem como os “safanões” que delas recebe e que lhes devolve.

Vem para a Metrópole em 75 primeiro para casa da avó nas Caldas, depois para casa da prima Fá em Alcobaça, até entrar para um colégio interno na Lourinhã. Determinadamente boa aluna e bem-comportada, afastada dos pais durante dez anos, viveu os seus amores e amizades de forma intensa e crua: Tony, a amiga do colégio, que amou e serviu com desvelo e admiração e David, um rapaz tímido e mais novo, com quem começou a estudar Filosofia e que vai ser a paixão, o amor da sua vida. Também ela vai ser a paixão da vida dele, abandonando-a, porém, por pressão do grupo por ela ser gorda.

E por isso sofre de forma dorida mas firme, conseguindo seguir em frente fortalecida (mesmo sangrando por dentro) por novos e sempre diferentes relacionamentos.

Trata-se de um romance arrojado pelas temáticas que aborda, pela natureza da protagonista, mas muito especialmente pela linguagem crua, os termos brutais que utiliza, pelas descrições impudentes de atos abjetos e de constrangedoras situações íntimas.

Só que tudo flui naturalmente…