Opinião

Letras | Aprender a Rezar na Era da Técnica

29 set 2022 19:56

Podemos afirmar que estes “livros pretos” de Gonçalo M. Tavares têm traços indeléveis da literatura do absurdo que se encontram em autores como Kafka, Beckett, Camus

Reeditado pela Relógio D’Água no início deste ano, Aprender a Rezar na Era da Técnica, de Gonçalo M. Tavares, chegou às livrarias em 2007. É o quarto livro da tetralogia O Reino: Um Homem: Klaus Klump (2001), A Máquina de Joseph Walser (2003), e Jerusalém (2004) sobre o qual já aqui escrevi. São os “livros pretos”, metáforas do ciclo filosófico moderno: a dialética da modernização e do modernismo, dominados por figuras negras cuja assumida superioridade – que os impele a usar de uma crueldade moral e física sobre os mais fracos – assusta e perturba quem os lê.

Aprender a rezar… conta-nos, de forma linear, a história de Lenz Buchmann desde a adolescência até à morte. Dividido em três partes: Força, Doença e Morte e cada uma destas partes dividida em pequenos capítulos introduzidos por esclarecedores títulos o que nos leva a pensar tratar-se uma obra de leitura fácil. A linguagem é simples e não há demoradas descrições de lugares ou do caráter das personagens. Dele nos apercebemos a partir dos comportamentos de cada uma.

Vamos, porém, confrontar-nos com uma temática de difícil compreensão e aceitação. O título do primeiro capítulo (e o próprio capítulo em si) é “O adolescente Lenz conhece a crueldade”, seguido por outros, igualmente brutais que caraterizam o protagonista. Cirurgião brilhante, único que “já salvou muitos homens e muitas mulheres” não por humanismo, mas porque é um médico na Era da Técnica. Segundo filho de Friedrich B., é por este preparado para nunca sentir medo, nem compaixão, nem afeições; educado para ser superior em tudo, dominando os mais fracos e a própria natureza. Ele domina a técnica, mas também os animais, os pobres, os diminuídos, a própria mulher da forma mais perversa e atroz. Todos lhe são inferiores, especialmente o irmão mais velho Albert que é o seu oposto e por quem sente o maior desdém.

Quando Lenz vê nas radiografias de Albert que tem “dois enormes pontos pretos” no crânio, nada sente. “A natureza não reza, não suplica, não pede piedade. Não reza. Afia lâminas.” – pensa, indiferente. (Alegoria de Abel e Caim).

É no funeral do irmão que Lenz decide ser político: “queria operar a doença de uma cidade inteira e não de um único e insignificante ser vivo.” Não imagina, todavia, que vai ser também apanhado pela doença que lhe tolhe todos os movimentos e o priva de alcançar o topo das suas intenções pérfidas – dominar a cidade.

Lenz está próximo do herói da tragédia grega, seguindo-lhe todos as marcas: areté – o sentido da máxima superioridade; hybris – a desmedida violência (o crime); a Némesis – o castigo. Só não alcança a catarsis – a purificação. Longe dos valores éticos e morais, recusa-se a “aprender a rezar” e morre só chamado apenas pela luz da televisão (e não pela metafórica luz divina) “que o chamava pelo nome” e o tranquilizava.

Podemos afirmar que estes “livros pretos” de Gonçalo M. Tavares têm traços indeléveis da literatura do absurdo que se encontram em autores como Kafka, Beckett, Camus.