Opinião
Letras | Do espanto em Húmus
Como o sonho, com a sua essência transcendente e o seu poder encantatório é uma das principais linhas de força da referida narrativa
O último número da Revista Ler (Inverno de 2022) traz um longo excerto sobre o nosso deslumbramento perante a excelência da Natureza, retirado do livro Losing Eden, da escritora e jornalista britânica Lucy Jones que será publicado brevemente em Portugal com o título Perder o Paraíso. A autora recorda que era «seriamente atacada pelo espanto em adolescente» que foi perdendo por isso não ser considerado «cool» pelos amigos e também porque foi perdendo o contacto com a Natureza. Refere ainda «uma nova área de investigação – a ciência do espanto» e desenvolve, de forma circunstanciada, como os fenómenos naturais nos fazem sentir melhor podendo ter implicações na nossa saúde mental e psicológica.
O que me atraiu para a leitura do texto foi tão-somente a alusão ao espanto do qual a autora se serve (e bem) para levar os leitores a contactarem e a deslumbrarem-se com a Natureza de forma a combaterem o stress. Nada a ver com o espanto em Húmus, a primorosa obra que Raul Brandão escreveu em 1917. O espanto, como o sonho, com a sua essência transcendente e o seu poder encantatório é uma das principais linhas de força da referida narrativa.
Espantosa é, de igual modo, a forma como David Mourão-Ferreira introduz o seu texto de reflexão crítica Releitura do «Húmus» (1967): «Acabo de reler o Húmus, de um fôlego, numa só noite, e dessa leitura saio, ao mesmo tempo sufocado e eufórico, impregnado até aos ossos de uma sensação de «mixórdia» e de «espanto» (…) mas do que não tenho dúvidas é que se trata de «uma» obra-prima da nossa literatura (…)
A vila encardida é o local onde «mora dum lado o espanto, do outro o absurdo» e onde se inscrevem as criaturas grotescas (um grotesco [na aceção de W. Kayser] associado ao trágico da condição do homem moderno no mundo, sujeito a forças ocultas, transcendentes, que o controlam, humilham, alienam, agridem e aniquilam) que o narrador inventou e vai chamando à narrativa para patentearem as suas perplexidades, questões metafísicas sem resposta: o mistério vida/morte, a dor de viver e o drama das consciências, a questão do tempo, - «Como a existência é monótona, o tempo chega para tudo, o tempo dura séculos.», a (in)existência de Deus «Crias-me e não existes.»
«A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro.»
O espanto em Húmus nasce do enigma, do incompreensível, do medo, do absurdo da vida. «Tudo para mim é uma causa de espanto – e através deste espanto pressinto ainda um espanto maior.»
Este espanto aliado ao medo e à sombra tem, porém, o seu reverso que é a ternura. E esta acontece quando, em Fevereiro, aparecem os primeiros sinais da Primavera. «Corre um vento glacial e as árvores encolhem-se transidas. Mas nessa frialdade sinto já ternura. (…)Uma árvore nova cobre-se entontecida da primeira flor. (…) E isto envolto em ternura – tanto faz que se trate de uma árvore como duma rapariga.»
O dionisíaco do espanto versus o apolíneo da ternura.