Opinião
Letras | Dos nossos hábitos de leitura
Lê-se pouco em Portugal? Sim, talvez. Mas já se leu mais? Os números estão a decrescer? Não! Nunca se leu tanto como agora!
Lemos por aí que "61% dos portugueses não leram um só livro no último ano! Um país refém de ordenados baixos e de fortes desigualdades sociais e educacionais no que toca ao acesso à cultura". E logo se levantou um sururu nos jornais e nas redes sociais: que horror! um povo que não lê! Um país pobre (ou um pobre país?) que não investe na cultura! Como se os níveis de cultura – conceito tão difícil de definir e tão maltratado nestes últimos tempos! – fossem avaliados apenas pelos hábitos de leitura de um povo! E a quem se apontou, de imediato, o dedo por esta falha ‘descomunal’ no panorama cultural português? À Escola, pois claro!
É típico e antigo: quando algo corre mal no que toca ao imaterial (e também ao material) humano, a culpa é da Escola! E aos professores, naturalmente, que não incentivam os alunos para a leitura. Este é um logro fácil de desmontar: tudo na escola se faz à base da leitura, o estudo é leitura, a apreensão do conhecimento faz-se através da leitura, os programas, nomeadamente os de Português, apelam à leitura e propõem a leitura de livros considerados cruciais (poderiam ser outros? Claro, mas se apontassem outros, logo se levantariam outras vozes críticas…) Foram sendo criadas bibliotecas escolares em todas as escolas e estão, atualmente, muitíssimo bem equipadas em termos de livros e outros suportes de leitura que os alunos podem, se quiserem e tiverem apetência, requisitar e levar para casa. Os professores bibliotecários colocados nas escolas desdobram-se em atividades para motivarem os alunos para a leitura. E não, não são os ordenados baixos nem as desigualdades sociais que impedem as pessoas de ler!
Lê-se pouco em Portugal? Sim, talvez. Mas já se leu mais? Os números estão a decrescer? Não! Nunca se leu tanto como agora! E não queiramos cair na tentação de fazer comparações com outros países! No início do século XX os países do Norte da Europa não tinham já cidadãos analfabetos, enquanto no nosso país a taxa de analfabetismo era de 80%.
No tempo do Estado Novo, a instrução do povo não era obrigatória se não em decreto determinando a 4ª classe para os rapazes e a 3ª para as raparigas. Pelo 25 de Abril de 74, 20% dos homens e 30% das mulheres deste país eram analfabetos! O esforço de escolarização que foi preciso fazer depois da Revolução não começou a dar frutos senão tarde na década de 90 e ainda nos querem fazer sentir mal por 61% dos portugueses não terem lido um só livro num ano?
Os hábitos de leitura (bem como de outros bens culturais) não se criam de um momento para o outro, nem por decreto, nem por medidas vindas de cabeças iluminadas. Lê-se por obrigação, ou por necessidade, mas no que toda à leitura por prazer e para mera fruição, essa tem de vir de dentro de cada um de nós. E isso não obedece a regras.