Opinião
Letras | Isabel Rio Novo (2020) Rua de Paris em dia de chuva, OU as invenções espácio-temporais…
Já escrevi sobre Isabel Rio Novo e o romance Rio do Esquecimento, de 2016, que apreciei na elegância de uma escrita espessa
Cheguei, assim, à leitura deste novo romance de 2020, escrito ao abrigo de uma bolsa de criação literária da DGLAB/MC – Rua de Paris em dia de chuva – com altas expetativas.
Aqui, o leitor é confrontado com uma personagem, a Autora (com maiúscula), que não (?) se confunde com o narrador omnisciente, e investiga a obra e vida de um mecenas de arte (impressionista)/pintor, Gustave Caillebotte (1848-1894), fascinada por um dos seus quadros (que dá o título ao livro), envolvendo-se com Helena, enigmática e misteriosa professora de história da arte, e outras personagens (quase só figurantes) que com ela se cruzam.
A linha espácio-temporal é, desde o 1.º capítulo, renegada como um dos mistérios da escrita (na continuidade da obra anteriormente lida, característica como marca específica da escritora):
A Autora recorda estas coisas assim, como se as visse, porque na realidade as viu, ou sente que as viu. Conseguiria ela explicar o modo como, um dia, avistou a carruagem envidraçada de Gustave Caillebotte ao cimo da rua de Turin? […] Caillebotte morreu novo, muito antes de a Autora deste livro nascer, e por isso foi necessário que ela recuasse bastante, através de corredores misteriosos, para esse avistamento. Se dissermos que nada disto é possível, que tudo isto contraria as leis da existência, responder-nos-ão que não percebemos nada do tempo, nem da vida, nem dos mistérios fundamentais. […] (opus. cit., pp. 12-13)
Ao longo de 15 capítulos, os meandros de uma investigação cuidada são delineados; viagens por paisagens do passado e do presente; visitas a museus de arte e lembranças das primeiras exposições universais do século XIX; inevitável ligação anímica entre objeto e sujeito de escrita (“[…] a sua relação com Gustave Caillebotte excedia o interesse de uma romancista por uma personagem? […] a Autora sentia-se mergulhar num daqueles momentos / em que o tempo e as suas medidas, os lugares e as suas ocorrências, se diluem numa dimensão misteriosa, aquela onde os vivos e os mortos existem lado a lado, sem assombro nem agitação.” opus. cit., pp. 49-50) – são descritos com elegante primor e refinamento até ao apogeu climático do final:
A Autora tem, ao escrever este livro, a idade de Gustave Caillebotte quando morreu. Inventou quase tudo isto, diremos. Inventou Helena. Mas que temos nós de nosso senão o que inventamos? Se alguém pintasse agora a Autora deste livro, […] esse alguém também a inventaria. […] Mas vocês, ela, Gustave, todos nós, chegados a este ponto da narrativa, sabemos que a paisagem que a habita é a de uma rua de Paris em dia de chuva, o que é muito bonito, mas talvez muito banal. (opus. cit., p. 228)
É provável que um dos maiores mistérios da arte, neste caso da literatura, seja conseguir ‘banalizar’ – tornar simples o que não é familiar – através da invenção das palavras (ou do traço, ou da cor, ou da forma, ou do movimento, ou da imagem, ou do som, ou…), oferecendo-as à interpretação do leitor (segunda marca específica?). Isabel Rio Novo não dececiona o leitor que vinha com altas expetativas. Transformou-se numa escritora importante deste século XXI: uma Autora com maiúscula, capaz de se autorretratar durante o processo de escrita, atravessando as linhas do espaço e do tempo.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990