Opinião
Letras | Lavagante de José Cardoso Pires
É uma história de amor – não há novela, nem romance sem a presença do amor – mas não de um amor belo. É um amor calculado, calculista
Não fora o filme de Mário Barroso do conto Lavagante com argumento de António-Pedro Vasconcelos estreado no dia do centenário do nascimento do escritor José Cardoso Pires, ninguém se lembraria de um dos maiores escritores portugueses do século XX nem da novela que lhe deu o nome.
As Letras são muito desprezadas num país que lê pouco: alarido (algum) para os escritores de hoje – que serão esquecidos amanhã – e apagamento para os do passado recente, grandes cultores da nossa língua e literatura.
Lavagante – encontro desabitado saiu, em versão reduzida pela primeira vez em dezembro de 1963 na revista O Tempo e o Modo como “um capítulo de um próximo romance” – diz a nota prévia da edição de Nelson de Matos lançada no décimo ano da morte do autor, aquando da entrega à Biblioteca Nacional desta parte do espólio pela família, em 8 de Abril de 2008.
O enredo é simples e o número de personagens é diminuto, o que não significa que a ação se desenrole de forma simples e que o texto seja de leitura simples. A começar pelo título, enorme metáfora de vários sentidos: “mais saboroso que a lagosta e parece mais selvagem porque não se adapta tão bem aos viveiros” – diz o barman do bar da praia onde se inicia a ação. Selvagem e rude conotação deste povo. O narrador apresenta uma explicação mais tenebrosa e devoradora da presa que vai alimentando e depois devora. Esta pode aplicar-se às personagens, todas elas com alcunhas rudes: o Engenheiro, o Sapo, velho, rico que “protege” Cecília, estudante universitária, inquieta, insegura que pretende “devenir femme” mas não sabe como, Cecília, a “mulher que se vê ao espelho”, sinal de insegurança; o PIDE, o Galo Velho – todos eles “lavangantes” capazes de devorarem a presa, o safio, Daniel Lobo, o médico “do contra” por quem Cecília se apaixona acabando por ajudar a “devorá-lo” – a ser apanhado pelo PIDE e metido na cadeia. Tudo isto o narrador, amigo de Daniel, nos conta em avanços e recuos ajudado pelas reais narrativas deste, saído já da cadeia e afastado de Cecília.
Não, não é uma história de traição: ficamos a sabê-lo no final do texto por uma carta de Cecília para Daniel em que confessa que voltou para o Engenheiro, o Sapo, porque não aguentou ficar sozinha sabendo-o preso. É uma história de amor – não há novela, nem romance sem a presença do amor – mas não de um amor belo. É um amor calculado, calculista.
É um importante apontamento, um duro apontamento político da vida que se vivia, safios nós “alimentados” pelo grande lavagante que detinha o poder e o aplicava pela Censura, pela Polícia Política, pela opressão que se exercia sobre um povo submetido. Momentos altos descritores dessa violência “aceite”: o dia a seguir ao motim do 1.º de Maio; a captura de Daniel; o Medo que ressalta da atitude de todo um povo e toda uma linguagem silenciosa, cautelosa, angustiada. Medo travestido e camuflado pela presença bela, livre da Primavera. O único momento belo do texto – a lembrar Raul Brandão.