Opinião
Letras | Literatura no feminino – Natália Nunes
Não é que elas não escrevessem e tão bem como eles, mas não eram reconhecidas nem valorizadas
Parafraseando Álvaro de Campos, alter ego dizem de Fernando Pessoa, na sua fase modernista, sensacionista mais frenética, eu queria «[ler] tudo de todas as maneiras»… Passei a minha vida profissional a ler livros sobre Educação porque «queria saber tudo de todas as maneiras» para conseguir ser o melhor possível na minha profissão. E só em tempo de férias me permitia ler alguns bons escritores: Vergílio Ferreira, Torga, Lídia Jorge, Saramago, João de Melo, João Aguiar, mas também alguns dos escritores de best-sellers: Marion Zimmer Bradley, Dan Brown, James Redfield, conforme iam aparecendo e sendo moda.
De há uns anos para cá, decidi colmatar muitas das minhas falhas no que toca a leituras de autores portugueses. Mas, quanto mais leio, mais buracos encontro na minha ‘manta de retalhos literária’. A minha formação universitária dos idos de 60 não abrangeu os contemporâneos (séc. XX) alguns dos quais eram ainda professores (Nemésio, David Mourão-Ferreira, Tomaz Kim) ou até alunos (Nuno Júdice, Mega Ferreira, Prado Coelho…) Por isso, desde que fui abandonando os deveres profissionais, mergulhei na leitura dos nossos bons escritores e poetas: Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, Lobo Antunes, Almeida Faria, Agustina, F. Pinto do Amaral, L. F. Castro Mendes, A. Carlos Cortez – sobre cujo romance Um Dia Lusíada falarei em breve.
Mas quantos nomes no masculino e tão poucos no feminino… Não é que elas não escrevessem e tão bem como eles nos três primeiros quarteis do século XX, mas não eram reconhecidas nem valorizadas. Uma das grandes desconhecidas é Natália Nunes (1921 – 2018), esposa do Professor Rómulo de Carvalho (o poeta A. Gedeão) e mãe da escritora Cristina Carvalho. Quantos de vós ouviram falar dela? E, no entanto, foi uma mulher letrada, cultíssima, bibliotecária e conservadora em instituições superiores, romancista, dramaturga, ensaísta, grande defensora de temas sociais. São quase sessenta anos de obra literária, em produção prolífera de romances, contos, novelas, ensaios, impressões de viagens, memórias, traduções. Atualmente, porém, os seus livros estão quase todos esgotados e sem reedição.
Um dos seus livros que consegui foi o romance Vénus Turbulenta (1997) que, numa linguagem elegantemente culta, desassombrada e tantas vezes erótica, conta a perturbadora vida de Ana Luísa, uma mulher da alta burguesia lisboeta, desde a sua adolescência pelos anos 50 até à idade madura (apenas fisicamente…)
Quem nos narra a história com abundante descrição e reflexões é uma amiga próxima de Ana Luísa, arqueóloga, que a acompanha (em presença ou por cartas) em todos os estádios da sua vida analisando para nós os seus múltiplos estados de alma e consequentes comportamentos muitas vezes considerados pouco ortodoxos para a época.
«Uma mulher fisicamente fascinante», rica e bem-nascida, segue as “leis” da vida de uma mulher daquele tempo e daquela posição social: casa, tem filhos, tudo lhe corre na perfeição, mas encobre uma constante ânsia de liberdade, de exibição, de realizar projetos nem sempre inocentes, para o que ela faz o que for preciso mesmo contra os cânones da época.
Profundo retrato sociológico da vida social da burguesia da época. Vale a pena ler.