Opinião
Letras | M. Teixeira Gomes (1989, 3ª ed.) Cartas a Columbano OU o ontem nas artes…
O olhar de TG, “em perpétuo mobile: cinematográfico” (op. cit., p. 11), tem sempre em Columbano o interlocutor ideal, que espera ver em presença a todo o momento
Hoje, Manuel Teixeira Gomes (TG: Portimão, 1860 – Argélia, 1941) é quase desconhecido para a maioria dos leitores. Filho de abastado proprietário algarvio e comerciante de frutos secos, aos 10 anos é enviado para o Seminário de Coimbra, sendo condiscípulo de José Relvas. Com 15 anos, matricula-se na Faculdade de Medicina, mas abandona o curso e dirige-se a Lisboa, onde frequenta a Biblioteca Nacional e se torna amigo de João de Deus e Fialho de Almeida. Cumpre o serviço militar e vai viver para o Porto, onde confraterniza com Sampaio Bruno, Basílio Teles e Soares dos Reis. Depois, vai trabalhar com o pai e faz várias viagens de negócios pelo Norte de África e Próximo Oriente. A partir de 1895 estabelece novos contactos com o meio literário lisboeta, incentivo para publicar a sua primeira obra: Inventário de Junho, em 1899.
Em 1904 seguem-se Cartas sem Moral nenhuma e Agosto azul, e o drama Sabina Freire no ano seguinte, Desenhos e Anedotas de João de Deus, em 1907 e Gente Singular, em 1909. Democrata e republicano, desde jovem, colaborou no diário A Luta, de Brito Camacho.
Com a implantação da República exerce o cargo de ministro de Portugal em Londres, entre 1911 até ao consulado de Sidónio Pais, que o demite. Mas em 1919, depois da morte de Sidónio, é ministro de Portugal em Madrid por curto período, até ser reconduzido de novo às funções na embaixada de Londres. Em 1922 é delegado de Portugal junto da Sociedade das Nações e entre 1923 (eleito em sessão do Congresso de 6 de agosto) e 1925 (11 de dezembro, data da renúncia) foi o 7.º Presidente da República. Embarca no paquete grego “Zeus”, a 17 de dezembro, faz um longo périplo e acaba por se fixar em 1931 em Bougie, na Argélia, onde morreu, sem nunca mais ter regressado a Portugal. Os seus restos mortais foram trasladados (a bordo do torpedeiro “Dão”) em 1950, para Portimão. Foi agraciado em cerimónia fúnebre com a Grã-Cruz das 3 Ordens Militares, a Legião de Honra e altas condecorações inglesas.
A partir de 1984, a ed. Bertrand publicou os vários vols. das “Obras Completas de TG” (alguns subsidiados pelo IPLLeitura) e, em 2009, a Imprensa Nacional inicia nova série editorial completa. Cartas a Columbano (1ª ed. em 1932) é o primeiro correspondente à série produzida durante o retiro argelino. Voltado para o passado, a revelar necessidade de continuar a conversar com o seu amigo e muito apreciado “pintor da alma” Columbano Bordalo Pinheiro (Cacilhas, 1857 – Lisboa, 1929), TG, sob a forma de 12 epístolas, entre 20 de janeiro de 1926 e 1 de maio de 1928, conta as suas viagens desde que deixou Portugal e viajou por Itália (Fiesole, Florença, Pisa – locais de 5 das cartas) e Norte de África (Túnis e Argel – locais de 7 das cartas). As cartas valem como texto literário e documento socio-histórico sobre política cultural (ou sua ausência…) e percorrem os vários museus e jardins visitados por TG – Louvre, Galeria Pitti, Jardins Boboli, Pisa… O leitor fica a conhecer os conceitos artísticos de TG e capta a individualidade do seu olhar estético, atento ao pormenor, deslumbrado, por vezes alucinado pelo efeito da arte no seu quotidiano. Revela descobertas – presença de Álvaro Pires de Évora, no convento de Santa Cruz em Pisa e Luís João de Portugal, no museu de Pisa – e obsessões – Miguel Ângelo em Florença. O olhar de TG, “em perpétuo mobile: cinematográfico” (op. cit., p. 11), tem sempre em Columbano o interlocutor ideal, que espera ver em presença a todo o momento, pelo menos quando se encontra em Paris, para comungarem da paixão pelos ‘artistas de tradição’, com saber e técnica, e aspirando ao ‘regresso ao estado primitivo’.
Desconheço se terá havido respostas de Columbano, mas, pelo que TG nos revela da complexa personalidade, é provável que primassem pela brevidade; porém o intento não seria expor a intimidade de uma amizade. Daí que, depois da 12ª carta, o texto prossiga com 6 solilóquios, sendo apenas datado o 1º, de 1-1-1929 e o 2º, de outubro 1930, já depois da morte do Mestre, a exibir a dificuldade de reflexões artísticas que não o tenham como interlocutor direto. “Preparar a humanidade para fruir cabalmente da parte espectacular da vida, é, com certeza, levá-la à solução única do problema social” (op. cit., p. 138).
O exemplo de Columbano é o de quem nasceu artista; porém sempre trabalhou arduamente para aperfeiçoar a sua técnica. Por isso, no fim do livro, TG sente a necessidade de deixar nas “Notas ensartadas a modo de Posfácio” as indicações que se sente capaz de transformar em artigo de divulgação do artista, onde explana sobre a formação, obras consagradas (‘Soirée chez soi’ e ‘O Grupo de Leão de Ouro’), críticas de arte recebidas e sua avaliação, fase retratista (com referência aos 3 retratos de TG por Columbano). Nostálgico do passado, artiste no mais profundo do conceito, o estilo de TG é uma estética feita ética, tal como a do Mestre Columbano, segundo o olhar de dois artistas de ontem: extasiados perante a materialidade da tela e da palavra escrita – sem digitalizações, o espaço da nuvem onde hoje se reúnem as artes… Em 2021, a Imprensa Nacional disponibiliza as obras de TG editadas em www.imprensanacional.pt: o ontem resgatado no hoje digital.