Opinião
Letras | Metamorfose
Transformar é uma das minhas palavras preferidas, pela metamorfose boa que resulta das sementes positivas que vamos deixando uns nos outros
Participei no final de 2022 numa ação de formação promovida pela Acesso Cultura em articulação com o Município de Leiria. No período da manhã falámos sobre acessibilidade, inclusão, aceitação e valorização das diferenças e da importância do cuidar e do fazer sentir bem o outro. Falámos de comunicação acessível, de bibliodiversidade, de representatividade e da necessidade de um espaço público, que se preocupa com os seus, e que elimina barreiras à participação e potencia a inclusão. Refletimos e ponderámos conceitos relacionados com a ética do cuidado e com a hospitalidade. Falámos de motivar, de incluir e de acolher. De transformar… que é uma das minhas palavras preferidas, pela metamorfose boa que resulta das sementes positivas que vamos deixando uns nos outros.
Há uma frase conhecida e inspiradora da Michele Obama que diz que “por cada porta que se abriu para mim, procurei abrir a minha a outros” e já agora a esse propósito e porque esta coluna também é sobre livros sugiro a leitura a miúdos e graúdos de Becoming, o seu livro autobiográfico. Às vezes é assim que entendo a mediação cultural e artística, o trabalho na escola e na comunidade e o que deveria ser o modus operandi das instituições públicas ou privadas, e de cada um de nós, assim como que o destrancar de portas, uma construção de pontes e uma abertura ao outro, sem hierarquias ou juízos de valor e com cuidado redobrado para chegar a todas as pessoas nas suas especificidades. Estar disponível para o outro cuidando do seu bem estar e da sua integração. Podemos também falar aqui de acolher, incluir, envolver, motivar e criar relação, podemos falar de energia, de empatia, de calçar os sapatos dos outros.
Da parte da tarde o anfitrião foi Marco Paiva, ator, encenador, agente cultural, que trabalha as questões da acessibilidade em particular das pessoas com deficiência. Fizemos teatro, fechamos os olhos, a boca e os ouvidos, pensámos nas pessoas da comunidade surda, por exemplo, nas barreiras que encontram todos os dias num quotidiano para pessoas ouvintes. Falámos de atores, artistas e agentes culturais com deficiências, ou de pessoas comuns que não são atores, artistas e agentes culturais com deficiência, mas que precisam de uma voz, de ser aceites, respeitados e incluídos. E isso é tão simples como cuidar do facto de poderem SER nas suas diferenças. Falámos de pessoas que fazem outras brilhar na sombra, de forma discreta e quase imperceptível. Falámos da Carta de Porto Santo, da arte participativa e inclusiva, dos 5º Punkada, e de minorias esmagadas por maiorias, falámos de amor, na sua expressão mais pura: “sentimento que predispõe a desejar o bem de alguém” (Infopédia).
E no dia seguinte à noite, (cortesia do Munícipio de Leiria) fomos ver o Zoo Story ao José Lúcio da Silva, um texto de Edward Albee, feito espetáculo em língua gestual portuguesa, encenado por Marco Paiva e brilhantemente representado por Marta Sales e Tony Weaver. A palavra dita é substituída por palavra gestuada, (estupidamente o meu corretor ortográfico não aceita a palavra gestuada)… e fazemos parte de uma plateia em que as pessoas ouvintes sentem na pele e e no estômago, o que é sentir-se na margem, excluído, numa espiral de babel… à procura do sentido inteligível de algo, que devia estar acessível a todos. Desta feita são os ouvintes a minoria, os que habitualmente têm a vida facilitada, os que agora procuram entender outras formas de comunicar… E acreditem em mim… foi verdadeiramente transformador. Uma metamorfose!