Opinião

Letras | Misericórdia de Lídia Jorge

12 out 2023 09:57

Um verdadeiro espelho da realidade cá de fora e não apenas – nem tão pouco – o retrato da vivência psicossocial e emocional da velhice

Misericórdia (D. Quixote, 2022), o décimo segundo romance de LJ (não) é um romance sobre a velhice ou a vida nos lares. Sabe-se que este livro foi escrito a pedido da mãe da autora internada numa residência para idosos onde viria a morrer, uma das primeiras vítimas do flagelo do Covid 19. “No último dia em que nos vimos a 8 de março, [de 2020] voltou a pedir-me que escrevesse um livro com o título Misericórdia, para que as pessoas tivessem mais compaixão umas com as outras quando chegassem ao que ela tinha chegado.” - diz LJ numa entrevista a Filipa Melo (in Revista Ler, Inverno 2022).

Sabe-se que a ação – narrada em primeira pessoa por Dona Alberti, o avatar da mãe da autora – se passa numa residência para idosos com todas as condições de conforto e bem-estar, um antigo hotel, o Hotel Paraíso, de que mantém o nome. De referir a acuidade semântica, a finura emotiva e fonética com que LJ escolhe os nomes das personagens e dos locais em todos os seus romances que é, parece-me, um dos muitos artifícios que utiliza para suavizar, junto do leitor, a crueldade ou a violência da realidade narrada.

Sabendo-se tudo isto, teme-se que se trate de uma narrativa dramática, dolorosa e de penosa leitura. Nada de mais errado.

O livro, de 450 páginas, reparte-se por 80 pequenos capítulos/episódios, sabiamente narrados (por Dona Alberti) e brandamente apresentados ao leitor (pela escritora) como que jorrando do seu imprevisível espírito, da sua capacidade de transfiguração da(s) realidade(s) observada(s), concluindo quase todos com um escrito, um aforismo, uns versos deixados pela mãe da autora, “Maria dos Remédios, a minha mãe muito amada”. De facto, a obra baseia-se em alguns destes breves escritos e em relatos registados também pela mãe num pequeno gravador, depois muito bem cerzidos pela mão rigorosa, mas poeticamente delicada de LJ.

Pelo olhar inteligente, astuto e sabedor de Dona Alberti entramos no ambiente do lar – o “lugar de exílio”, com os seus cerca de 70 residentes – cada um, pelo menos os seus mais próximos, com os seus pequenos/grandes defeitos e vicissitudes, invejas, amores e desamores e ódios… Tratados, servidos e acompanhados por uma variada panóplia de funcionários – personagens muito bem delineadas que carregam problemas sociais pungentes: a imigração, o preconceito sexual, de cor, de género, de estrato…

Um verdadeiro espelho da realidade cá de fora e não apenas – nem tão pouco – o retrato da vivência psicossocial e emocional da velhice. Esta vem plasmada nas insuficiências e nas incapacidades físicas e em alguns episódios de demência bem como na presença da morte – que, simplesmente, acontece. Até quando, depois de momentos de grande euforia perante a chegada do ano 2020, o Ano do Carro, a residência é fechada e tudo desaba às mãos da epidemia…

Sempre atenta aos momentos político-sociais e individuais mais marcantes na nossa História recente, e preocupada em deles fazer um registo anti-histórico muito pela voz dos mais excluídos, nomeadamente as mulheres, consegue-o LJ uma vez mais em Misericórdia.