Opinião

Letras | O que a chama ilumina, de Afonso Cruz

4 abr 2025 08:36

São 124 páginas em que se fala de pequenas-grandes histórias da História, de geografia, de liberdade e da falta dela, de (des)humanidade, do que acreditamos ser a felicidade, de fraternidade e compaixão

Celebravam-se os 500 anos do início da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães e convidaram-no para uma residência artística na Patagónia. Foi assim que o escritor Afonso Cruz (AC) chegou a Santiago do Chile no outono de 2019 onde se viviam crescentes protestos das populações contra as cavadas desigualdades sociais, provocando violentos confrontos com a polícia e com o exército. Foi este clima de atrocidade que AC enfrentou quando chegou a Santiago e do qual foi vítima logo nos primeiros dias. Este assustador incidente a que se juntou um tremendo acidente que sofreu na Patagónia que o atirou para um longo e dramático internamento num hospital patagónio foram o que o levaram a, no seu habitual estilo fragmentário e refletivo, escrever sobre aquela viagem.

São 124 páginas divididas em 34 pequenos capítulos em que se fala de História, de pequenas-grandes histórias da História, de geografia, de liberdade e da falta dela, de (des)humanidade, de memória, de Darwin e do rei da Inglaterra, do que acreditamos ser a felicidade, de fraternidade e compaixão, dos povos indígenas, da criação da arte – da efemeridade da vida, enfim. E onde se fala da morte. Muito da morte, da perda, do fim: “Começa aqui uma viagem sobre o fim” – são as primeiras palavras da introdução na qual o autor nos prepara para a narrativa, para o “ensaio-novela” como ele lhe chamou. Novela porque narra os acontecimentos da viagem, ensaio porque reflete fundamentadamente – com referências a livros e autores – sobre o que aqueles lhe sugerem. Tudo nos é apresentado em espiral, em novelo cujo fio pacientemente temos de desenrolar. E digo pacientemente porque há tanto para absorver dessa leitura que nos transporta para o fim do mundo: a Tierra del Fuego que Magalhães terá avistado “como uma visão do Inferno”, metáfora do submundo. (p. 43); para o violento fim dos povos indígenas fueguinos (o Genocídio Selk’nam); o fim de culturas milenares e das línguas. O eclipse do mundo. (pp 61-63).

Absolutamente comovente e devastador o capítulo sobre as Mulheres de Calama no deserto de Atacama que revolvem as areias à procura de partes do corpo dos seus familiares mortos e ali enterrados às ordens do ditador Pinochet. Como impressionantes são as pequenas narrativas encaixadas que servem de suporte a profundas reflexões sobre a perda, a dor, o amor, o bem e o mal. Uma que narra a história do pequeno indígena Orundelino trocado por um botão de madrepérola e levado com outros três para Inglaterra para serem “civilizados” à inglesa e depois serem recolocados nas suas ilhas a fim de melhorarem a vida daquelas gentes… Outra que fala da teoria da evolução das espécies que “Darwin quis publicar com o desejo de acabar com a escravidão, [porque] somos todos iguais, descendentes do mesmo símio.” (p. 75). Maravilhosa a explicação para o aparecimento da arte como forma de ultrapassar o fim: da dor, da vida.

Não é a vela que interessa, mas o que a sua chama ilumina.