Opinião

Letras | Os Loucos da Rua Mazur, de João Pinto Coelho

4 mai 2023 11:36

Não se trata de mais uma obra sobre as atrocidades da II Guerra. O âmago da narrativa, o que fica gravado na mente do leitor, é a história de amor e de ciúme vivida pelas três personagens que suportam a ação

Neste meu afã de ler o máximo dos clássicos da boa Literatura Portuguesa do século XX, quase não arranjo tempo, nem espaço mental, para conhecer os autores da chamada nova geração. Uns dois ou três títulos de João Tordo, um ou dois de José Luís Peixoto, de G. M. Tavares, Uma Viagem à Índia e os livros de capa preta e pouco mais. E depois há tanta poesia para ler!

Mas agora que uma amiga de sempre me ofereceu este romance de J. P. Coelho, autor que desconhecia, e dada a constância dessa amizade, embrenhei-me na sua leitura e resolvi trazê-la aqui.

A obra desenvolve-se em dois tempos e dois espaços distintos: Paris, 2001, e numa obscura cidadezinha do Nordeste da Polónia entre 1934 e 1941, tendo como personagens principais, que se mantêm até ao final do enredo, três amigos de infância polacos: dois rapazes – Eryk, cristão (mais tarde escritor “belga” de renome) e Yankel, judeu e cego (depois livreiro em Paris) e Shionka, a menina muda, filha de uma mulher tida como bruxa que vive na floresta, afastada da cidade.

Embora a trama seja algo linear (os dois velhos amigos, muito marcados pelo rancor e pelo ressentimento de uma longa vida de forçado afastamento, encontram-se para comporem o livro das suas vidas no inominável tempo da guerra) a narração da ação obedece à atual moda de desconstrução das linhas do tempo e do espaço, estratégia que nas últimas décadas tem sido usada com o objetivo de melhor captar a atenção e o empolgamento do leitor. Mas, embora metodicamente feita pelo autor do romance, torna-se um pouco excessiva.

Uma primeira metade do livro traça a história da cidade, habitada desde tempos imemoriais por judeus e por cristãos que, como podiam, foram coexistindo. São-nos apresentados com minúcia os maiores da cidade com todos os seus ódios e defeitos, que as qualidades quase não existem… Até que, aí por 1939, chegam os invasores: primeiro os soviéticos e, mais tarde, quando Hitler rasga o acordo com os soviéticos sobre a partilha da Polónia, pelos nazis. Esta é a segunda parte da narrativa, a mais trágica, a mais violenta. E não se pense que essa violência é cometida pelos alemães. Para nossa grande repulsa, são os cristãos – que já antes se tinham aliado às atrocidades dos soviéticos – que vão perpetrar os mais horríveis autos-de-fé contra os judeus com quem anteriormente conviviam.

Não se trata, porém, de mais uma obra sobre as atrocidades da II Guerra. Estas são-nos descritas até ao mais ínfimo pormenor de crueldade, mas o âmago da narrativa, o que fica gravado na mente do leitor, é a história de amor e de ciúme vivida pelas três personagens que suportam a ação, nomeadamente entre Eryk, o cristão, e Yankel, o judeu, – que cruelmente abandona perante uma morte anunciada – e a quem nunca perdoa o facto de, não obstante cego, ser mais belo e mais viril e, o que é pior, ser o preferido de Shionka.

Uma história cruel. Contudo, a crueldade está na nossa natureza...