Opinião
Letras | Um Dia Lusíada – o enredo
Sem dúvida, um livro de rutura, de vanguarda
Ler este romance é uma aventura – reafirmo – como aventura foi a vida da personagem principal, Elias Moura, e como o narrador no-lo foi dando a conhecer, como aventura foi o autor escrevê-lo.
A história conta-se facilmente (ao fim de duas leituras atentas do livro todo, claro!) Trata-se da vida de Elias Moura, “75 anos, ex-combatente, solteiro, ex-professor, filólogo, licenciado com tese sobre Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro (…) quando veio da guerra, colocado numa escola algures em Lisboa…” (p. 179) e que traz na bagagem, para além dos traumas de ter nascido numa família algo desregrada, com um pai alcoólico que nunca o compreendeu e de uma mãe submissa com sete filhos; do trauma da guerra colonial que viveu duramente em Moçambique (o sangrento episódio Nó Górdio); e do trauma de ter sido um professor demasiado exigente e crítico da classe docente e por isso ter sido alvo de uma processo disciplinar; além desses novelos que lhe consomem a mente e lhe baralham a vida condicionando-a também, ele traz na bagagem a ideia de escrever um livro para o qual foi reunindo ideias, textos e apontamentos mas que é incapaz de compor. Até que, aí por 1993, “ali à calçada do combro”, encontra o narrador que lhe há de compor o livro: um funcionário público de uma repartição de finanças que olha Elias e lhe faz lembrar um seu professor de latim. Depois – ou melhor, antes e depois e pelo meio – é um nunca acabar de encontros entre ambos para discutir a arquitetura do livro a partir de rolos de papeis que E.M. lhe vai fornecendo e a partir dos quais aquele narrador vai desenhando, para nós leitores, o caráter, a vida, a mente atormentada de Elias Moura. O “fluxo interior da personagem”, à maneira de Joyce.
Pelo meio, o autor, que não o narrador, ou um pelo outro, não sabemos bem, vai deixando notas de rodapé incitando o leitor a continuar explicando os entremeios destes avanços e recuos. É o que nos vai valendo!
Muito do que se vai sabendo sobre o enredo é-nos dado pelas muitas notas de rodapé que transcrevem pedaços dos papeis de E.M. [A lembrar a construção da biografia de Tiago Veiga pelo escritor Mário Cláudio.] Há um olhar desencantado sobre o presente que transpira de E.M. em que transparece a visão algo pessimista do autor sobre a escrita, sobre os livros editados, sobre o ensino da língua, sobre o conhecimento dos nossos autores, “lembrai-vos do Vieira!”, sobre “os senhores escribas da geração pós-25” (p. 373) “então e o futuro? O futuro aqui, nesta europa à deriva, fechada para a europa, e a europa, virá um touro raptá-la ainda?”
Não, não se trata de “uma portentosa mixórdia” como advoga o crítico Eugénio Lisboa. “É a tentativa de uma re-inauguração do literário nos dias de hoje. (…) Uma história bem contada, entre fragmentos” (Lídia Jorge).
É, sem dúvida, um livro de rutura, de vanguarda. E de uma enorme erudição.