Opinião

Letras | Um Homenzinho Atarefado

9 jan 2022 20:00

De certo modo, este livrinho transportou-me para o O Principezinho de A. Saint-Exupéry

… Ou de como tão naturalmente se define a ternura…

Tem tudo para ser visto como uma narrativa infantojuvenil, mas que enorme lição para todos nós, adultos! O espantoso é que todo o contexto se desenvolve numa associação de apoio e solidariedade para a integração social, a OASIS, aqui em Leiria.

A escritora e editora, a Fátima Costa, que carinhosamente todos conhecemos por Fati, é também personagem-narradora e utente da associação, tal como a personagem principal, o Homenzinho inquieto, e toda a ação se desenrola naquela casa onde vivem – felizes, tendo em conta a narrativa.

Lemos no prefácio que "Fati tinha 49 anos. Ivan, 16, era portador da síndrome de Prader-Willi. Conheceram-se na OASIS e, desde então, construíram uma grande e longa amizade. (…) Ivan, um jovem curioso que tudo procurava saber. Fati, a braços com uma deficiência motora, sequela de um AVC, era uma mulher culta. Dotada de uma inteligência inigualável e de rara sensibilidade e argúcia, atendia às questões incessantes de Ivan. Chamava-lhe o ‘homenzinho atarefado’."

Ora o livrinho trata exatamente dessas incessantes questões que o homenzinho lhe foi pondo, desde um dia em que a Fati regressava de férias e, de chofre "uma vozinha ansiosa" dela desconhecida lhe pergunta: "Onde fica a Finlândia?"

A empatia que se desenvolve entre eles – mercê talvez do facto de se tratar de seres intrinsecamente irmãos: ambos cultos, curiosos, inteligentes, imaginativos e intensamente doces, tudo apesar das suas grandes limitações – gera um enredo de perguntas imaginárias por parte do homenzinho para as quais a Fati cria, tece, inventa as respostas mais incríveis tendo embora sempre um fundo de verdade, de ciência e, naturalmente, de ternura. E perante questões de como ir até à Finlândia ou se poderá ir às Canárias de jangada, a nossa doce narradora transmite-nos em itálico os seus pensamentos mais puros: "Incrível… que desafio. Meu Deus! tenho de rever, urgentemente, os meus conhecimentos náuticos e geográficos para não falsear a informação. Não posso nem quero defraudar o meu interlocutor. Ele não merece."

O Homenzinho dardeja a amiga com os assuntos mais díspares: "Chantilly e mosca tsé-tsé… Oceano Atlântico. União Europeia, queridos tubarões, mundo… Tudo, tudo sem bombas, sem maldade, nem terrorismo, só ternura:" - diz-nos a narradora. E acrescenta: "A minha cabeça gira à velocidade dos fusos horários. Tão depressa estou em Pequim, como em Buenos Aires ou na Lapónia. (…) Divertimo-nos tanto… Eu invento histórias de acordo com as suas preferências geográficas…"

São 35 fragmentos afetuosos e divertidos que se leem com o maior agrado. Sem o mínimo de pieguice, sem um pingo de sentido de piedade. Mas imensamente doces. Com toda a naturalidade e com uma linguagem tão simples como simples e natural foi a amizade que nasceu entre eles.

De certo modo, este livrinho transportou-me para o O Principezinho de A. Saint-Exupéry e foi do seu prefácio que trouxe esta frase que tanto se adequa ao livro do Homenzinho: "Só um coração puro e cheio de alegria pela vida é que conseguiria expressar, de forma tão terna, um dos laços mais importantes da existência: o amor."