Opinião

Literatura | A mulher que correu atrás do vento Ou o talento disciplinado

26 abr 2019 00:00

Crítica | "Ouvi algumas das entrevistas do escritor no youtube e compreendi como para ele foi este o exercício mais surpreendente"

O que anteriormente escrevi sobre João Tordo e a sua escrita promissora, pode agora ser reavaliado e firmado com este novo e belíssimo romance. E como sou sempre a leitora, antes de ser a crítica, corro atrás do vento, ilusoriamente sentada com e sob a proteção do cão e do teclado.

Debaixo do Sol, João Tordo arriscou novos trilhos e voltou a forçar o seu talento a uma disciplina complexa e complicada. O resultado é o contrário de um livro fácil e de rápida leitura. Não me refiro apenas à extensão do romance (456 páginas), a que os leitores mais afoitos (cada vez menos?! Cada vez mais?!...) aderem com facilidade, mas à estrutura da narrativa.

Em primeiro e inaugural lugar, há quatro vozes narrativas, inscritas em diferentes tempos cronológicos e espaços – Beatriz (1992), Lisboa; Lisbeth Lorentz (1892), Baviera; Graça Boyard (1973), Londres; Lia Boyard (2015), Lisboa – umas vezes narradas na 1.ª pessoa, outras por um narrador omnisciente ou um dramaturgo ausente (vide cap. 6 ‘Ensaio Geral’), ou ainda resultantes do cruzamento dos diferentes episódios. Ora, é deste cruzamento que resulta a principal dificuldade para a velocidade de leitura: há que voltar atrás e deixar o vento pousar, para tentar perceber quantas teias ilusórias são tecidas neste romance.

Note-se que (embora não seja a estreia de Tordo no registo feminino) aqui o registo da voz feminina entra sempre com uma profundidade essencial: só um talento muito disciplinado alcançaria este surpreendente simbolismo corporalmente psicológico e psíquico de escrita no feminino.

Ouvi algumas das entrevistas do escritor no youtube e compreendi como para ele foi este o exercício mais surpreendente. E se a música de Cristina Branco o ajudou num momento de ‘escrita encravada’, até isso foi transplantado para a musicalidade do romance e das personagens que o habitam/escrevem.

Em segundo e arquitetónico lugar, há 8 grandes capítulos, com o aceno de um nono a ser construído pelo leitor, suspenso com o final aberto da narrativa.

O capítulo 5, ‘O Lugar perfeito’, pode ser entendido como a descrição de quadro ou paisagem ou a constituição do cenário verosímil de muitos dos anteriores capítulos e dos seguintes. É o Único com apenas 2 páginas, tornando-se o núcleo central do mundo edificado. Há o antes e o depois dele.

Ora, depois da surpresa final - no capítulo 8, ‘Tão verdadeiro como (2017)’ há uma troca entre as duas personagens femininas, e Beatriz volta a ser a narradora ressuscitada (matando Lia e, com ela, uma parte do que julgávamos ter lido e compreendido/interpretado nos anteriores capítulos…) – parece ser a própria ficção que procura uma verdade para tudo: que é feito de Jost, o autista?

Em terceiro e abstratamente inconclusivo lugar, há a literatura, a escrita, o amor aos livros, a tradução impossível, o talento (destrutivo) dos artistas, o abandono (inclemente? Compassivo? Narcísico?...) da criança e/ou do outro, os abusos (sexuais, serviçais), a(s) obsessão(/ões) devoradora(s) e criativa(s).

No meio das omnipresentes referências à literatura, à pintura e à música, flutuam disciplinadamente personagens secundárias como as cozinheiras ou o padre Frederico: sem eles o talento derrama-se ao sabor do vento. Ora, estas personagens não correm: apenas estão lá…

*Professora do ensino superior

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990