Opinião

Literatura | Isabel Rio Novo (2016) Rio do Esquecimento, OU a elegância da escrita espessa…

23 mai 2020 00:46

Isabel Rio Novo nasceu no Porto em 1972. Com formação académica cimentada, é docente no ensino superior de Escrita Criativa e outras disciplinas nas áreas da literatura e do cinema.

Tem várias publicações no âmbito dos estudos intermédia, das literaturas portuguesa e francesa e da teorização literária.

Integrou diversos júris de prémios literários e de fotografia. Em 2004, escreveu a novela O Diabo Tranquilo (em colaboração com o poeta Daniel Maia-Pinto Rodrigues) e, em 2005, o romance A Caridade obteve o prémio literário Manuel Teixeira Gomes. Em 2014, publicou Histórias com Santos (volume de contos).

O romance Rio do Esquecimento foi finalista do Prémio LeYa em 2015, publicado em 2016 pela ed. Dom Quixote.

Trata-se, sem dívida, de uma herdeira da escrita camiliana e agustiniana, com uma escrita espessa e enredos obscuramente entrelaçados e densos, entre o romantismo das personagens e um travo de mistério e do policial, capaz de enredar o leitor desde as primeiras frases: “É difícil explicar, mas era realmente uma sensação de silêncio, apesar do rumor das bátegas grossas, implacáveis, que lhe fustigavam o rosto contraído pelo frio.”(opus cit, p. 11).

Acrescente-se a este fulgor da escrita, pesada de adjetivos luminosos e descrições inesperadas e surpreendentes, o facto de os saltos cronológicos subverterem a lógica da narrativa histórica e deixarem os leitores em suspenso até ao fim. E ainda – para mim o mais interessante – as intromissões do narrador omnisciente ao próprio leitor, que põem em causa a própria técnica /processo da escrita e da leitura/interpretação: “[…] E então? Que tem tudo isto, posto que já o sabíamos? Pergunto-vos, nesse caso. Que diríamos de um homem que por divertimento pegasse num punhal e lentamente, às picadas, matasse uma criatura e lançasse o desespero no coração de outras? […]” (opus cit., p. 88).


A intriga passa-se em oitocentos, na cidade do Porto, e urde-se à volta dos amores e desamores das paixões e jogos de fortuna da pobre menina Teresa Baldaia, nascida fora do casamento e desonrando a sua mãe, que pertencia a uma classe social alta, mas falida.

O pai, de classe mais baixa, emigrou para o Brasil e lá enriqueceu e a sua torna-viagem vai mudar a vida de Teresa. Nicolau Sommersen, da velha e arruinada aristocracia, arquiteta fazer um casamento por interesse com Teresa, mas sente-se apaixonado por Adelaide Clarange, mulher bem casada com Alfred (de quem Nicolau é sócio) e honrada mãe de seus filhos. Veja-se como a sábia Agustina Bessa-Luís nos pisca o olho através destas palavras de Isabel Rio Novo: “[…] O amor tem sempre o que quer que seja de crime; ou uma pessoa ama como quem se perde, ou não sente realmente o amor. […]” (opus cit., p. 111).

Escuso de vos dizer que há um crime e que haverá muitas desilusões amorosas: quer para as personagens quer para os leitores, sempre perante acontecimentos inesperados.


É provável que a beleza desta escrita esteja na simbologia de algumas palavras-chave (e rio é uma delas; e memória a outra…), mas também na névoa misteriosa que cobre as aparições /desaparecimentos / renascimentos de uma personagem que quase nada é no romance e nunca deixa de lá estar: “No dia 7 de março de 2004, Teresa completou uma caminhada de quase trinta léguas e chegou exausta ao cemitério da irmandade. […] Teresa pensou sinceramente em ficar, mas sabia / que o seu lugar era outro. […]

Então, considerando se lhe restariam tempo e forças para isso, decidiu voltar ao leito do rio, em cujo caudal poderia, finalmente, descansar.” (opus cit., pp. 157-8).

Espero ver, um dia, a versão cinematográfica deste filme. Será belíssima e muito rica. Tão espessa como a escrita elegante do Rio do Esquecimento.