Opinião

Literatura | Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares

1 mai 2020 20:00

Depois da leitura açucarada – embora dura e trágica – de "Jesusalém", de Mia Couto, vi-me empurrada para a leitura do quase homónimo "Jerusalém", escrito em 2004 por Gonçalo M. Tavares, um dos seus quatro "Livros Pretos", que toca, de forma quase chocante, a loucura e o absurdo da atual vida humana, a degradação do corpo e da mente, o horror e a banalidade do mal, a solidão, o medo.

Grande profusão de temáticas dentro de um romance que não chega às 250 páginas. E aí reside o talento e a mestria do autor. 

Tal como Ernst, uma das personagens «tenta ligar ou coser as frases da cidade de forma a que esta apresente um discurso homogéneo», também o autor liga as personagens e cose momentos e atuações que, faseada e gradualmente, deixam fluir o enredo. 

De facto, tudo roda em torno de Mylia, esquizofrénica, que casa com Theodor, o médico que a analisa e acaba por internar no Hospício Georg Rosenberg, «porque Mylia começava a ser perigosa para si própria.»

No hospício, ela envolve-se com Ernst e dessa ligação nasce Kass, que lhe é retirado à nascença e adotado por Theodor que, ao saber da gravidez, pedira de imediato o divórcio. A criança nasce com deficiência física. 

Cada uma das personagens que se cruzam com Mylia encarna uma das temáticas que nos são apresentadas a partir dos seus comportamentos e da maneira mais fria e direta.

Assim, Theodor investiga o horror ao longo da História a partir de textos e documentos sobre acontecimentos como o Holocausto; Ernst apresenta deficiência física e psicológica; Hinnerk, marcado pela guerra, personagem assustadora que parece um mostro, amparado apenas por Hanna, a prostituta, vive num constante estado de medo de que se resguarda trazendo sempre consigo uma pistola; Kass, o menino com deficiência motora como a do pai Ernst e problemas de fala, criado pelo pai adotivo Theodor num dos melhores colégios da cidade, nunca até aos doze anos saíra de casa sozinho e desconhece a sua história de vida; Gomperz, o médico-gestor do hospício, autoritário e repressivo, representa a obrigação da obediência à lei e ao que está estabelecido, assim como Thomas, pai de Theodor.

O título é explicado ao leitor quando, já bem avançado na narrativa, Mylia, ao reencontrar Ernst, ao fim de vários anos, cita o salmo: «Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita.»

A ação, violentamente dolorosa e trágica, desenvolve-se em espiral a partir do que nos vai sendo dito sobre a vida e o pensamento de cada uma destas personagens em avanços e recuos no tempo e na narrativa.

De facto, as categorias tempo e espaço são apresentadas difusamente, ficando o leitor informado que tudo se passa numa qualquer cidade e num qualquer tempo que acompanha, em (sobre)saltos a vida de Myria entre 18 e os 48 anos. 

Personagens, ação e até o estilo de linguagem versam o absurdo da vida e o vazio humano bem ao estilo de Kafka e de Sartre. Muito bom.

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990