Opinião

Literatura | Livro de Vozes e Sombras de João de Melo

23 ago 2020 20:00

Aos poucos a Literatura começa a tomar conta das dores da nossa História recente – da segunda metade do século XX – no seu processo tridimensional: a guerra colonial, a revolução de Abril e o retorno dos residentes nas ex-colónias.

João de Melo consegue reunir no seu último romance, Livro de Vozes e Sombras, as três temáticas, às quais junta, de forma muito bem urdida, o desejo separatista dos Açores nos tempos conturbados de 74/75 – assunto nunca até agora abordado em Literatura. Tudo começa com a chegada da bela e jovem jornalista Cláudia Lourenço a S. Miguel para entrevistar, em encontro clandestino, Mariano Franco, elemento histórico da FLA sobre aquele movimento.

Todo ele sedução e melancolia na voz e no trato, vai narrando a sua vida de menino de família, proprietário poderoso e rico, “um colonial-fascista” que tinha de Portugal a ideia teórica do país multirracial e multicontinental” – no dizer do autor. Oferece-se voluntário para a Guiné onde experimenta (e narra) os horrores de uma guerra tão cruel. Fala de igual modo das ofensivas da FLA em S. Miguel e do seu principal adversário Manuel Cristóvão, o “sindicalista”.

Num salto brusco na narrativa, sem sabermos porquê, entramos na Casa Grande de Munakala, em Angola, enorme propriedade servida por grande quantidade de criadagem negra, construída e dirigida pelo brutal Custódio Pinto, com os dinheiros que ganhou como madeireiro nas terras do Norte.

Casado com a submissa Maria dos Anjos, gera a menina Ângela em noite de grande bebedeira. A menina nasce “ceguinha”, mas dotada de uma sensibilidade e de uma apreensão da realidade absolutamente fora do comum.

É uma das personagens mais bem conseguidas da obra, tornando-se a narradora de toda a consternação criada na família e, em especial, em Custódio pela perda da Casa e de todo o património, pela passagem da autoridade da tropa portuguesa para a tropa negra, pela trágica fuga para a cidade grande, pela dramática partida para a Metrópole e pela acidentada e dolorosa chegada dos “retornados” a Lisboa, pela loucura do pai.

Esta é, claramente, a sequência (o livro está dividido em sequências) mais trágica, mais violenta, porém mais realista da narrativa. Voltamos à entrevista com Mariano e às voltas e reviravoltas da FLA com um capítulo especialmente bem descrito sobre o sequestro e a expulsão de um homem de S. Miguel para Lisboa que, de novo, deixa o leitor quase sem saber do que se trata. A entrevista termina e a jornalista regressa ao jornal com o material que reuniu junto de Mariano.

Então pergunta o leitor: como se cose a história de Munakala e dos controversos tempos do PREC em Lisboa com os relatos da FLA? Aí reside «o grande esmero na arquitetura da obra» de que fala Beja Santos: quando a jornalista vê o seu trabalho resultante da entrevista arrasado pelo diretor do jornal, tem a ideia de procurar os “inimigos” da FLA e vai encontrar Manuel Cristóvão, o “sindicalista” sequestrado e expulso para Lisboa, casado com uma cega – a “ceguinha” de Munakala – que vêm costurar as várias narrações. Admiravelmente bem escrito, com descrições belas e horríveis e frases luminosas que eu bem gostaria de transcrever aqui…

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990