Opinião

Literatura | O Fascínio das Naus

9 fev 2020 20:00

Diz-nos a História que o Império se iniciou com o Infante D. Henrique, no século XV, e terminou no 25 de Abril, tendo as decisões políticas, desde o Ultimato Inglês – e mesmo antes – até à Guerra Colonial, sido todas tomadas em função, por causa e para manter o Império.

É, de facto, um, senão mesmo o traço cultural que mais fundo marcou a nossa identidade como povo. A Literatura – e como a nossa Literatura é rica! – excedeu grandemente esses limites, tal não foi grande o apelo do mar, de o dominar, de lhe chamar nosso.

São do século XII as mui portuguesas Cantigas de Amigo que já sabem a mar: «Sedia-m’ eu na ermida de San Simion/ e cercaron-mi as ondas, que grandes son:»; «En Lixboa, sobre lo mar,/ barcas novas mandei lavrar,/ ai mia senhor velida!»; «Jus’ a lo mar e o rio,/ eu, namorada, irei/ u el-rei arma navio.»

São as chamadas barcarolas que, além do tema, apresentam uma cadência que sugere o movimento das ondas.

Para registar de forma poética, épica, lírica os enormes feitos marítimos dos portugueses refiram-se Os Lusíadas, a nossa grande epopeia, que, nas suas mil e cem estâncias de estilo erudito e hiperbólico, narra a história dos «Barões assinalados/ que da ocidental praia Lusitana/ por mares nunca dantes navegados/ passaram ainda além da Taprobana (…)» glorificando-os, mitificando-os, tornando-os semideuses.

Também Pessoa nos deixa a sua belíssima obra épico-lírica, Mensagem, que versa, de forma simbólica e mítica, os heróis pátrios e como corresponderam ao enorme apelo do mar: «Quantas noivas ficaram por casar/Para que fosses nosso, ó mar!»

Torga, nos seus Poemas Ibéricos, canta: «Vinha de longe o mar…/Vinha de longe, dos confins do medo… a murmurar/ Aos ouvidos da terra o tal segredo…»; «E, namorada em sonho, a nau partiu./ Partiu e o coração da Mãe parou. / E parado de angústia assim viveu/ Enquanto a caravela não voltou.»

«Os que avançam de frente para o mar/ E nele enterram como uma aguda faca/ A proa negra dos seus barcos/ Vivem de pouco pão e de luar.» - Sophia.

«Cá vai Deus a remar / e eu a ser um remo com que Deus/ rasga caminhos pelo Mar…» - Sebastião da Gama.

E tantos, tantos outros poetas lusos que cantaram o fascínio do mar! Depois de Abril, veio o retorno cruel e doloroso que vem sendo objeto da Literatura.

E, sobre esse violento regresso depois do fim do Império, não há como não referir o excelente relato de O Retorno, de Dulce Maria Cardoso (2015) e o extraordinário exercício de entrosamento entre a partida das caravelas no século XV e o regresso das mesmas na segunda metade do século XX feito por António Lobo Antunes em As Naus (1988).

Parecendo parodiar essa imensa parcela da nossa História, com a sua extrema maestria no manejo da Língua, o autor retrata da forma mais feroz (e, ao mesmo tempo mais sarcástica) os momentos mais sérios e mais trágicos que se viveram no país depois de 74.

Uma leitura diferente. 

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990