Opinião

Literatura | Pena Capital

29 nov 2020 15:39

Este livro é enfim para mim o expoente máximo da amizade em poesia

No mesmo mês em que vimos partir Cruzeiro Seixas, um dos mais profícuos promotores do surrealismo em Portugal, decidi apresentar um livro que fará sempre as delícias dum imaginário perdido meu e a tentativa de entender quase o que é indecifrável no nosso paradoxo razão vs. papel do inconsciente.

Este Pena Capital, eleva Mário Cesariny e o próprio surrealismo português a um patamar de enorme importância cultural e histórica, sendo este um conjunto de poemas e colectâneas que com os anos vem sendo reeditado e objecto de emendas e acrescentos.

O livro homónimo foi publicado em 1957, tendo por esta altura o autor enviado a Cruzeiro Seixas esta carta e que dá conta sucintamente acerca da utilidade e importância da brochura e do poema: “O meu livro dito Pena Capital - capital para todos, sem esquecer o autor - chegou às livrarias. Vou fazer-to chegar - apesar de, ao que me parece, não tenhas tomado na devida conta a matéria constante do poema que dá nome ao livro e que não é outro senão o que lá tens, mal titulado: António o Azul o Poeta. Pena Capital, é mais correcto.”

É também no jogo da fantasia, quer pela paródia mas também pelo cunho sentimental (o nosso mais comum património), que Cesariny traz à obra um aspecto de viagem evocatória com poder de golpear a realidade presente criando em si uma nova realidade.

Evocatória de Pessoa e seus heterónimos, dos amigos presentes e dos idos. De plasmar bem nas suas obras o surrealismo ortodoxo. Evoca por exemplo na abertura do Poema Capital como “Poeta”, António Maria Lisboa, fazendo-o ressuscitar através de “António” com quem irá empreender uma viagem cósmica durante o qual os dois personagens, junto a um terceiro - o “Azul” -, se vão deparando com símbolos de um certo imaginário marítimo caracteristicamente português.

“Caramba caramba António/ já estás muito mais parecido/ ou então era eu que não me lembrava/ Olha hoje o teu clima está magnífico/ olha vamos sair desta cidade/ onde o teu clima é sempre para dividir por cinco/ vamos para as praias da alma arrebentar-nos vivos/ vamos ser os heróis duma tragédia química/ e convidamos o Azul por uma questão de princípio”

Esta obra que evidencia toda uma panóplia de recursos - exercícios de escrita automática, aglutinações, escrita em diferentes línguas, etc - é também uma luta satírica para com a repressão policial e perseguição homofóbica inerente ao regime.

Mas é um carinho que também se entrega à amizade, seja por via da eloquência disforme, seja pelo teor altamente erótico ou a alusão aos demais percursores e representantes dum movimento que tem em Freud uma postura disruptiva em relação aos implantados cânones sociais.

Este livro é enfim para mim o expoente máximo da amizade em poesia.

O encontro com um mundo novo onde as fronteiras não existem e onde essa mesma amizade vê mais em mim do que a própria razão poderia alguma vez contemplar.

Como se toda a poesia e amor coubessem numa só premissa: “Ama como a estrada começa”.