Opinião

Música | A valentia e generosidade de Garner

22 abr 2022 20:00

A música de Anne Garner navega numa certa ambiguidade de quem não procura dar respostas e apenas deixar perguntas

Procuro sempre partilhar trabalhos de autores(as) que me parecem ter a capacidade inata de deixar longas impressões em quem os/as escutam e que, em grande parte, possam não ter ainda gozado daquele mediatismo mais evidente; gosto assim de os celebrar. Sinto que essa capacidade poderá naturalmente desvendar-se em quem nos convida - com o seu trabalho honesto e criativo - a perscrutar as nossas memórias e vivências, ao embalo daquilo que são peças ou canções que, intencionalmente, nos dão espaço para nos ouvirmos a nós próprios.

A música de Anne Garner parece-me ter esse condão, e não é de fácil categorização. Navega, antes, numa certa ambiguidade de quem não procura dar respostas e apenas deixar perguntas. Garner exprime-se não apenas pela sua belíssima voz mas também pelos instrumentos piano e flauta. Lost Play (2018) celebra a indomável alegria e ingenuidade da infância, numa sensata e crua reflexão acerca do perigoso resvalo de uma certa curiosidade para a, quase sempre inevitável, tenebrosa conformidade do ser. Há uma evidente aceitação da condição do “eu” enquanto algo que se metamorfoseia e sofre uma paulatina erosão com o avançar do tempo. Este seu quinto trabalho discográfico (embora não o mais recente), é uma edição de Slowcraft Records, de James Murray, com quem partilha, também, a produção deste disco (e, tanto quanto percebi, de quem é ainda companheira).

Pelos media realça-se a valentia e generosidade de Garner em expressar-se de forma tão crua, destemidamente dando voz (e musicalidade) às suas mais profundas preocupações existenciais, escolhendo cuidadosamente cada uma das palavras nas letras que escreve. Contrapõe mas equilibra de forma belíssima a crueldade e desavença nos pensamentos que partilha com a delicadeza e esplendor poético que emanam da sonoridade que transporta.

Em Lost Play há um cruzar de estilos musicais, há folk, música ambiente, música electrónica e laivos de música clássica, há uma minuciosidade nos arranjos mas tem tanto de premeditado como de despretensioso e intimista. Entre manifestações de frustração e alguma sombra, há na voz e nos arranjos da autora um vislumbre de esperança para a redescoberta ou tentativa de revisitar aquele sentimento da infância de outrora.

São vários e experientes os músicos que contribuíram para este maravilhoso disco, com instrumentos variados como a harpa ou o saxofone, instrumentos de cordas, entre outros, a que se somam a flauta, as teclas e a voz de Garner, bem como três outras – igualmente fascinantes – vozes. Este álbum é uma bela porta de entrada para o trabalho exploratório fascinante desta compositora atualmente a residir em Inglaterra.