Opinião

Música | Debaixo da tua janela

4 jan 2024 10:41

Lembro-me de querer muito ouvir determinada música e não ter como. Era uma espécie de tortura que metia camadas de nervos em cima, muita frustração e, no final, resignação

Houve um tempo não muito distante em que, por razões tecnológicas, não existiam as plataformas atuais com playlists infindáveis e não se podia ouvir tudo o que queríamos. Valia aquele familiar com uma boa coleção de discos, ou um vizinho que, ao longo dos tempos, vamos reconhecendo cada vez mais que foram pedras basilares na nossa formação, de forma informal, casuística e que só com o distanciamento de anos é que se chega a um verdadeiro reconhecimento.

Aquela sensação de nos depararmos com uma aparelhagem altamente sofisticada com dois decks de cassetes, e sim, algumas já traziam auto reverse, que é como quem diz, mudava do Lado A para o Lado B sem ser preciso fazer a operação manualmente. Acenavam-nos com o futuro e, de facto, dentro da mesma geração, o desenvolvimento aconteceu de forma admirável neste mundo novo.

As razões políticas também se atravessaram no caminho quando, meia dúzia de patetas, com a mania que carregavam sozinhos o peso do mundo nos ombros decidiam, por decreto, que a melhor maneira de esconder crimes de guerra era banir canções pop das rádios. Ridículos.

Lembro-me de querer muito ouvir determinada música e não ter como. Era uma espécie de tortura que metia camadas de nervos em cima, muita frustração e, no final, resignação. Aquilo ecoava cá dentro de forma imaginária, mas nada concreta o que aumentava os níveis de ansiedade. Como em muita coisa, com o passar dos anos o “trauma” foi amenizando e hoje até consigo olhar para essa altura com alguma graça.

Ainda assim, guardo momentos extraordinários, já no início deste século até. Como esquecer uma manhã de domingo – dia de folga da minha vida na estrada de runner numa companhia de dança – em Estrasburgo, em que de um apartamento ecoava a canção "The Valleys" das muito indie Electrelane? Se fosse hoje, provavelmente, pensava “que boa ideia, vou ouvir isso quando chegar ao hotel” ou escutava logo ali no telemóvel, mas não. Antes destas plataformas, fiquei ali, debaixo da janela a deliciar-me com aquele momento.

Cabe-nos hoje não ser passivos e continuar a procurar, se quisermos. Pessoalmente, ainda sinto prazer na descoberta por conta própria, haja tempo para isso.

Outra situação semelhante aconteceu em Lisboa, com a música "Johnny & Mary", interpretada pelo malogrado Robert Palmer. Ali a onda de choque foi reencontrar uma velha canção conhecida, mas que, com o tempo, me tinha esquecido totalmente. A vantagem de hoje da música à disposição também está nos reecontros, que naquele caso foi ainda à antiga, casual, portanto.

Ouvir a música dos outros debaixo das suas varandas parece uma coisa muito antiga, mas devo esclarecer que já se estava no século XXI. Isto andou muito depressa. Feliz 2024!