Opinião
Música | João Paulo Feliciano: entre as Caldas da Rainha e Nova Iorque
Surge como figura central — não apenas como músico, mas como catalisador, produtor e curador informal de uma geração inteira
Num clima de efervescência cultural as Caldas da Rainha tornaram-se um dos epicentros mais originais da cena alternativa portuguesa no final dos anos 1980 e início dos 1990. Num texto académico, Luiz Alberto Moura e Paula Guerra realçam a identidade própria da “Cena das Caldas”, moldada por uma combinação rara de fatores geográficos, artísticos e humanos. A proximidade com Lisboa permitiu um fluxo constante de influências, contactos e colaborações, enquanto a cidade mantinha um espírito de experimentação que só os contextos periféricos conseguem fomentar com tanta liberdade.
Neste cenário, João Paulo Feliciano surge como figura central — não apenas como músico, mas como catalisador, produtor e curador informal de uma geração inteira. Artista plástico com formação linguística, com um olhar atento ao que se passava no país e no mundo, Feliciano incorporava aquilo que definia o novo rock: criatividade, ironia, abertura a influências globais e capacidade de liderança.
A sua influência foi decisiva para a coesão de uma cena que, de outra forma, poderia ter permanecido fragmentada. Bandas como Red Beans, Yolk, Flat Beer From Rusty Pipes e outras emergiram num ambiente estimulado por Feliciano, que ia ao encontro dos jovens músicos, produzia maquetes, partilhava referências e criava pontes.
Um dos marcos foi a criação, juntamente com amigos, da Rádio Margem, uma rádio livre nas Caldas onde Feliciano apresentava um programa pioneiro. Ali tocava não só bandas internacionais como Sonic Youth, Dinosaur Jr., Pixies ou Beastie Boys, mas também projetos nacionais emergentes — como os Pop Dell’Arte, cujo EP Illogik Plastik (1989) teve o seu lançamento simbólico na rádio, com a presença do próprio João Peste. Esse gesto, aparentemente simples, inseminou alguma coisa na cidade e criou um sentido de pertença e de possibilidade.
Num passo ocasional, nasceram os Tina and The Top Ten, descritos como “the very first all portuguese fake american rock n’roll band”. Com um humor afiado, uma estética visual marcante e uma sonoridade que misturava rock alternativo e influências lo-fi, a banda tornou-se um símbolo da nova atitude da música portuguesa. Depois, com Rui Toscano, surgiu a aventura da Moneyland Record$.
O que aconteceu nas Caldas da Rainha não foi apenas o surgimento de algumas bandas, mas a construção de uma cena — um ecossistema cultural onde a música, a arte, a rádio, os espaços de convívio e, sobretudo, as pessoas se entrelaçaram. E nesse processo, João Paulo Feliciano foi muito mais do que um músico: foi o reator de uma cena periférica no centro do país, o arquiteto invisível do Oeste e de uma das mais relevantes contribuições para a cultura alternativa portuguesa.