Opinião
O insustentável peso das coisas…
O que interessa é o voyeurismo vil, a morbidez, a banalidade do mal, ou do sofrimento dos outros, porque todos temos o direito democrático de julgar, ofender, sentir a dor que os outros sentem
Talvez me interpretem mal, mas fazem precisamente 50 dias, à data em que escrevo que não vejo notícias na televisão com o rigor e o tempo de outros tempos . Não que não me interesse pelos passos em volta, mas, para a minha sanidade mental e consequentemente para os que tenho comigo, deixou de me apetecer, como num exercício de negação de quem não quer aceitar o mundo menos bonito que acontece fora da nossa bolha e que ainda não há muito tempo achávamos que convergiria, num futuro próximo, para um cenário de acalmia, e, se não idílico, pelo menos melhor.
Demoro algum tempo a repor-me do choque, e por vezes deixo-me ficar assim numa espécie de transe que vai ofuscando a realidade… Nestes 50 dias muitas coisas aconteceram. Tenho andado a pensar nisto: umas coisas aconteceram mais, muiiiiiitoooooo mais, na medida em que não pararam de encher canais de televisão e redes sociais, e conversas de café e discursos sapientes de quem sabe tudo, sobre tudo e que vive assim em modo Wikipédia permanente, Google, ou ChatGpt na ponta da língua, e que pode opinar sobre tudo e sobre todos na sua omnisciência.
Outras coisas aconteceram seguramente menos, na medida em que quase ninguém ouviu falar nelas e, ou não passaram ou assumiram presença ténue em horário nobre ou quando todos dormem, e dessas ninguém fala, porque o que interessa é o voyeurismo vil, a morbidez, a banalidade do mal, ou do sofrimento dos outros, porque todos temos o direito democrático de julgar, ofender, sentir a dor que os outros sentem, e com toda a propriedade de quem passa o dia informar-se, a documentar-se e claro a emitir opiniões múltiplas, porque todos sabemos que somos todos um bocadinho de uns e de outros, logo, isso confere-nos o direito de achar que também somos um bocadinho o outro e sentir o que ele sente, e estar certos das suas motivações…
Toda esta sapiência superior leva-me a pensar em algo menor para os doutos, dotados de opinião, e que será talvez, a urgência cultivar a humildade, a hospitalidade e os laços fraternos entre as pessoas, e que permitam olhar para as causas do que ironicamente tenho estado a pensar lá atrás.
A propósito do que as artes, o desporto e os momentos de reunião têm a dizer sobre isto, deixo a citação de um amigo que diz assim: “Os nossos governantes têm muito pouca noção do valor social do desporto. Na análise micro aqui do nosso grupo vejam o potencial que o desporto tem na construção de elos identitários da sociedade, quem diz o desporto diz a cultura. A coesão territorial que é um tema premente no momento também se faz por aqui.
O investimento que se devia fazer nestas dimensões é subvalorizado e é uma pena. A verdade é que temos os nossos meninos a viverem estas experiências e prepararem-se de forma inigualável para vencer na vida, somando a isto nós ainda nos vamos divertindo e convivendo”.
Será preciso que as artes, o desporto e os momentos de reunião, gritem iteractivamente de megafone em riste, no cimo de uma montanha , para que a sua voz reverbere, abane e se repercuta num mundo melhor?
Isso, ou o insustentável peso de algumas coisas.