Opinião

O longudo

28 out 2021 15:45

Tanto que gostaria de abraçar e de ser abraçado só para sentir que pertencia a alguma coisa

Os rapazes chamavam-lhe assim por via da maldade que é própria entre eles quando se tentam afirmar na sua pubescência recém-adquirida.

O resto da rua porque outra forma não tinha de definir todo aquele encorpamento, alto de mais para a medida meã em que se comparavam, mas, sobretudo, pelo comprimento imenso de pernas e um despropósito de braços e dedos que lhe pendiam do corpo.

Desde gaiato que assim era, sempre alto e forte de mais para a idade, o que confundia as pessoas e as levava a esperar dele um comportamento próprio duma maturidade que ainda não tinha, fazendo-os esquecer os anos que contava de facto.

A rapaziada tirava partido do erro de apreciação e, por cada vez que um deles asneirava, apontavam-lhe o dedo como culpado do que não tinha feito e logo um adulto por perto o reprimia com o sonoro insulto do costume: “Devias ter vergonha, um rapagão do teu tamanho!”

Porque era grande cabia-lhe o lugar mais recuado na sala de aulas para que não estorvasse a visão dos outros para o quadro.

Porque era tímido remetia-se ao silêncio e não intervinha nas discussões da turma, o que um tornava num esquecido para os seus pares.

Porque ilha se tinha tornado, os professores se esqueciam de o fazer sentir parte dum arquipélago e dele tinham desistido.

Do hábito que lhe vinha de sempre ver a nuca dos outros foi-se arrecuando de si e sem préstimo ou saber se sentia.

A observação do reverso da cabeça dos colegas fê-lo pensar que haveria de ser a parte mais desprotegida de cada um por ausência de olhos que antevissem os perigos que de trás poderiam surgir.

Ele bem sabia que assim era pelo costume generalizado que os outros tinham de lhe darem pancadas sonoras e de mão bem aberta na nuca sempre o apanhavam de surpresa.

Tão repetido era o gesto que acabou por aceitar ser essa uma forma de cumprimento desajeitado dos colegas e um modo de confirmar que era pessoa visível.

Conversas e palavras é que nada. Convites para os jogos nunca, exceção feita no futebol onde era sempre escolhido para guarda-redes que pelo tamanho do corpo, braços e mãos, ocupava a baliza mais que os outros e atemorizava os adversários.

Mas mesmo aí nunca recebia abraços que via os colegas de equipa partilharem aquando de um golo marcado, nem mesmo quando defendia os penaltis mais rebuscados.

Tanto que gostaria de abraçar e de ser abraçado só para sentir que pertencia a alguma coisa.

Num dia que ficou triste para a memória de todos no bairro, um acidente, daqueles que nunca pensamos poder acontecer, ceifou a vida a um dos colegas da escola.

Enlutaram-se os rostos e todos sentiam a perda como mais irreparável que qualquer outra.

Longudo estava tão triste como os demais e mais ainda porque não sabia das palavras com que se diz da dor que não tem palavras para se dizer.

Por momentos pensou na injustiça da vida e nos caprichos da morte e que mais valia ter sido ele a desaparecer que nenhuma falta fazia aos outros.

Os colegas estavam todos ali, acabrunhados, tristes como não sabia ser possível. Juntos, muito juntos uns aos outros como que a protegerem-se e a cuidarem-se entre si.

Unidos num pranto comum e de cabeças baixas. Nucas. Só se viam nucas e essas ele bem as conhecia.

Abeirou-se deles como que a pedir desculpa de ali estar, abriu os braços numa imensidão de comprimento como só ele poderia fazer e abraçou-os a todos de uma só vez.

Os rostos ergueram-se a uma vez e sorriram pela vez primeira para aquele gigante que lhes permitia sentir a dor como uma coisa que era deles todos e dele também.

Longudo pensou que era uma ave que pela envergadura desmesurada das asas podia cuidar de todos aqueles desprotegidos e pela primeira vez sentiu-se leve e aceite.

 

Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990