Opinião

O que fica depois de tudo

16 mai 2024 16:02

Ninguém sai incólume da travessia do tempo em Dia. Há culpa, abandono, ruptura, luto, silêncios e rituais de passagem precipitados.

Dez anos depois de A Rainha da Neve, Michael Cunningham, autor americano celebrizado com o romance As Horas, adaptado ao cinema num filme protagonizado por Meryl Streep, Julianne Moore, Nicole Kidman e Ed Harris, regressa à ficção com Dia (Gradiva, 2024), um romance que acompanha três dias em três anos distintos – 2019, 2020, 2021 – da vida de uma família nova-iorquina, antes, durante e depois do início da pandemia por Covid-19.

Mas o vírus que serve de contexto ao olhar que Cunningham dedica ao núcleo familiar central deste seu novo romance, não passa de um pretexto para o regresso do autor aos temas que têm atravessado as suas criações literárias – as ligações afectivas, em todas as suas manifestações (maternal, fraterna, amorosa heterossexual ou gay), que unem as personagens e configuram uma espécie de cortina protectora face às ameaças do mundo.

No centro da dinâmica familiar está, desta vez, um triângulo amoroso aparentemente platónico. Isabel, uma editora de fotografia bem-sucedida, sente-se mal por ter perdido o fascínio erótico por Dan, o marido, um ex-músico de segunda linha, de aparência física abandonada pela vaidade, que procura recuar a um tempo que já passou, e Robbie, o irmão de Isabel que desperta sentimentos amorosos em Dan e que compensa afectivamente a irmã pelo desejo que ela já não sente ou desperta.

Robbie é ainda o suporte emocional dos filhos do casal, Nathan e Violet, de 10 e 5 anos, dois seres que observam as reconfigurações familiares à lupa e cuja identidade se adensa na penumbra. Pelo pequeno apartamento de Brooklyn circulam ainda o irmão de Dan e Chess, a mulher a quem doou esperma para uma maternidade possível, que nutre por ele uma espécie de ternura utilitária. E por fim Walter, o avatar de Robbie que apenas existe na sua página de Instagram e no qual ele projecta o seu parceiro de sonho ou a versão melhorada de si mesmo.

É ao embate que as circunstâncias exteriores desencadeiam nesta estrutura familiar ao longo dos três dias dos três anos em que a acção do livro decorre, a que o leitor assiste em Dia.

E se a ideia narrativa parece simples, aquilo que Michael Cunningham nos oferece é o retrato a um tempo intrépido e compassivo das suas personagens, das suas quedas e das suas possíveis salvações. Ninguém sai incólume da travessia do tempo em Dia. Há culpa, abandono, ruptura, luto, silêncios e rituais de passagem precipitados.

Mas Cunningham sabe descrever os recantos sombrios e ao mesmo tempo redentores que reajustam as suas existências, através do olhar generoso singular que o acompanha desde os seus primeiros livros.

E que bom é lê-lo a regressar assim: «Quem é que não se sente desamparado? Não será melhor reconhecê-lo? Não deveríamos substituir as acusações por um reconhecimento mais circunspecto e desgastado pelo mundo? Amamo-nos uns aos outros porque não sabemos amarnos verdadeiramente a nós mesmos; dependemos uns dos outros porque não sabemos depender de nós próprios. Não conseguimos convencer as nossas filhas a não usarem vestidos feios que já não lhe servem, não conseguimos lidar com o mundo como outrora, não conseguimos impedir que as pessoas morram.»