Opinião

O rei cai nu

9 ago 2020 12:00

"Por receio ou cobiça, a Humanidade passou a prestar vassalagem à Soberba..."

 

Mal o dia amanhecera e já a Humanidade despertava, erguendo-se do sedoso leito da fraternidade, diante das amplas paisagens da virtude, debaixo do majestoso arvoredo da inocência. Soberana de si mesma, acordava livre, partilhando em partes iguais a
abundante generosidade das terras, repartindo irmãmente os frutuosos encargos do seu trabalho.


Era ainda manhã, caminhava despreocupada a Humanidade, quando, vinda do absoluto nada, apareceu a Soberba. Fiel à sua natureza, a Soberba prometeu privilégios e benefícios, distribuiu ameaças e intimidações, aliciou, corrompeu, seduziu.


Ao meio-dia era já senhora da Humanidade. Por receio ou cobiça, a Humanidade passou a prestar vassalagem à Soberba, oferecendo-lhe como tributos os frutos do seu afã, erguendo-lhe altas muralhas, no alto das quais ela se refastelou, ditando ordens e ordenando regras próprias aos ambiciosos desejos e aos ávidos caprichos que a sua ganância impunha.


Pela tarde a Humanidade vergou, cedendo sob o pesado fardo da submissão. A Soberba exigia cada vez mais alimentos, muralhas cada vez mais altas. A Humanidade colhia com dificuldade os frutos da terra, sangrava, quebrando a custo as pedras das muralhas. Trabalhava sem parar e, na azáfama do seu labor, a Humanidade emagrecia. Refastelada, bem nutrida e protegida, a Soberba engordava.


Quando o pôr-do-sol chegou, a Soberba rebentava pelas costuras. A Humanidade construíra-lhe um opulento palácio, recheado a ouro e diamantes, que ela mesma arrancara da terra. Os melhores alimentos compunham um copioso banquete, que ela
mesma servia. A mais bela música, por ela mesma harpejada, ecoava no sumptuoso salão. A todos os desejos da Soberba a Humanidade acorria, cedendo, sacrificando, definhando. A Humanidade morria. Pouco importava, a Soberba era agora divina.


Exausta, pela noitinha, a Humanidade adormeceu. Em sonhos surgiu-lhe uma menina toda vestida de branco. Trazia pela mão um facho ardente, cujo brilho, intenso como o sol, tudo iluminava. À sua luz, a Soberba apareceu só, privada do seu soberbo aparato, despida dos seus exuberantes paramentos, privada do seu palácio e do seu banquete, desapossada das suas insígnias, do seu ceptro, da sua coroa. Nua e
desvalida, a Soberba revelou-se. Era gorda, velha, doentia. Banhava-se num sujo charco de lama.

Misteriosamente, o olhar da menina sussurava. «Acorda, Humanidade», dizia, «o verdadeiro nome da Soberba é Monarquia».