Opinião

O sextante do Cova

8 jul 2016 00:00

Quando era puto ensinaram-me que os nossos navegantes se orientavam por um instrumento que misturava ótica, estrelas, ângulos e linhas do horizonte e mais umas contas de cabeça que só esses marinheiros de antanho saberiam fazer.

Sextante. Para não me esquecer pensava numa estante à sexta-feira e lá me acertava nos testes de história. Creio que nunca mais pensei no assunto. A sinalética vertical e o GPS ajudaram ao esquecimento e os meus exames do secundário já foram no século passado.

Há dias, bem cedo, encontrei o Cova de sextante em punho e dei comigo a rir-me da minha desmemória. Fui logo numa pressa tomar um café à praça para gravar o momento e tomar notas. Afinal o fulano é topógrafo, imagine-se! E eu que o pensava sempre de fato preto, acanhado e comprado na Zara, de gravata preta, a fazer serviços fúnebres ao sol para justificar ter posto a “Lua de Luto”. Sei lá como o imaginei com essa vida, mas sempre acreditei que se ocupava a transformar a Senhora da Encarnação numa Stonehenge do avesso. Assim como se ele fosse o líder de uma associação mística e o Bordel Ravel uma cerimónia pagã para angariar fiéis e outros seguidores.

Agora já sei que o seu sextante se chama teodolito e que a mira o ajuda nos cálculos. Menos mal. Afinal o moço não é sombrio. Contudo ainda não sei se confio nele. Vejamos: suponho que um topógrafo descobre linhas, ângulos, medidas, dimensões, onde nós só vimos distâncias, percalços do terreno ou, quanto muito, paredes e muros. Logo seria suposto que os seus apontamentos se traduzissem nuns quantos números e meia-dúzia de rabiscos, mais tarde traduzidos e alinhados em cartas topográficas. Qual quê? A pretexto do cumprimento civilizado espreitei-lhe o caderninho e o que vi encheu-me de preocupação.

O rapaz, subrepticiamente, desenha (e bem!) pedaços da cidade. Empenas, varandas e janelas, paramentos, alçados, áticos, testadas, está lá tudo. O cachopo, disfarçado de topógrafo, afinal anda mas é a sugar a memória edificada da cidade. Isso é motivo de preocupação. Não tarda, um qualquer empreendedor quer fazer progredir a cidade, e lá vêm os esquissos do Cova fazer mossa. Mas não, isso não pode ser assim! Era o que mais faltava! No traçado original havia aqui este apontamento que não se pode perder porque desvirtua o espírito da urbe! E lá ficará o projeto mais não sei quanto tempo a passear-se entre gabinetes de decisão só porque há um herege que parece gostar da nossa cidade e que cuida de manter viva a memória dos edifícios. É perigoso e trava o progresso.

Isto já vai longo e preciso de outro café. Afinal Leiria é mesmo uma capital da Cultura. Não capital do entretenimento como alguns preconizam, mas dessa Cultura sólida, feita da memória e saber de quem nela habita. Uma cidade de Cultura feita deste e de outros Covas que leem e interpretam o quotidiano de todos nós e com isso fazem criam, nos envolvem, inquietam, nos fazem sentir orgulho de ser daqui. Agora já entendo porque há tempos o Cova dizia que as coisas lhe passam pela cabeça e depois tem dificuldade em não as executar. Pudera! Ele tem um sextante.