Editorial
Paredes que passam à história
A pintura mural da menina loira a saborear um café, ali para os lados do Bairro dos Capuchos, vai desaparecer.
Lembram-se do artista-mistério? Pois é, já lá vão quase dez anos. Como o tempo passa e como a arte fica, ou não fica, como o conceito prevalece, ou se desvanece nas ondas dos costumes.
A arte urbana não é coisa nova em Leiria. Basta recuar um pouco no tempo e lembrar, por exemplo, os modelos naïf que tomaram conta de alguns muros estratégicos das nossas cidades, naquele tempo, quase todos alusivos à revolução de Abril. Eram os cravos, os operários de punho erguido, as frases reaccionárias, as pombas brancas de hino a uma nova liberdade.
Mais tarde, desabrocharam em Leiria e em algumas praias da região, os murais de expressão espontânea, trabalhados com pincéis emprestados pela Câmara e meia-dúzia de latas de tinta oferecidas por uma empresa em início de actividade. Também nessa altura, o acto de pintar num espaço público, apesar de autorizado, representava, para os envolvidos, um sentimento de intervenção, um sinal de libertação. De libertação cívica, cultural e intelectual. Disso, apenas restam, porventura, alguns registos fotográficos. Tudo o resto foi consumido pela voracidade do desenvolvimento.
Mas regressemos ao artista-mistério. Recordam-se quando Leiria despertava com a surpresa de uma nova imagem (sempre a preto e branco), do Castelo de Leiria, de uma mulher a ir à fonte ou de um bando de corvos? Como, nesse tempo, não havia vídeovigilância, nunca se chegou a saber publicamente quem era o aspirante a Banksy à portuguesa. E, entretanto, insistimos, já passou quase uma década.
O tempo suficiente para uma mudança radical de mentalidades. Da quase clandestinidade (como revelamos na edição desta semana), a arte urbana passou a ter ‘paredes com história’ na nossa cidade.
Há quem questione a ‘história’ plasmada em alguns desses murais, mas não há dúvidas de que foi um investimento público assumido, saudado por muitos, criticado por outros. Levanta-se aqui mais uma diferença de perspectivas? Talvez.
Quem critica, alega falta de critério na selecção de alguns projectos, lamenta a atitude do oito ao 80 e fala de uma onda sustentada mais pelas tendências do que pelas convicções.
Quem elogia, está-se borrifando para as ‘guerras’ surdas entre artistas e pensadores. Gosta e pronto.
No fim disto tudo, há uma coisa que não mudou. Este tipo de arte continua a ser efémero. Foi assim com muitos dos murais inspirados na revolução dos Cravos, com os murais dos inícios dos anos 90 do século passado, com as pinturas do artista-mistério e, agora, será também assim com uma ‘parede com história’, como também damos conta nesta edição.
A pintura mural da menina loira a saborear um café, ali para os lados do Bairro dos Capuchos, vai desaparecer.
Fica aqui o registo para a posteridade.