Opinião
Pensamentos à deriva
O poder de quem trata e cura não pode nunca ser sinónimo de endeusamento e de distanciamento
Confesso que às vezes não reservo o devido tempo/atenção a certos assuntos, sejam eles sérios ou banais. Vou empurrando para outra altura, mesmo que esteja tudo ali à mão de semear, e só lhes atribuo a verdadeira relevância em SOS. Posso incluir aqui orientar-me sozinha numa cidade onde já passeei inúmeras vezes, mas guiada por terceiros; confecionar um prato que já vi repetidamente fazer; ou até mesmo decidir em quem votar nestas últimas legislativas, por exemplo. Só quando realmente preciso, penso na importância do trabalho prévio e aí sim, obrigatoriamente, olho com olhos de ver, pois a necessidade não espera e só de mim depende. Talvez assim eu me permita fazer porque sei que a informação estará sempre disponível noutro momento que não aquele. É o logo se vê do agora não.
Enfim, há coisas difíceis de mudar e modos de funcionamento que assumidamente consideramos desadequados, mas que apesar de tudo tendemos a manter. É assim a vida, a imperfeição é uma garantia.
Eu lido a toda a hora com pensamentos que concorrem com o usufruto pleno da experiência principal. A toda a hora talvez seja exagero, mas acontece frequentemente. Se alguém me conduz por ruas e ruelas numa cidade desconhecida eu aproveito para olhar além disso. Não decoro cruzamentos nem sinaléticas, mas sei que música se ouvia na rádio enquanto dava conta das cores do casario. Se alguém cozinha, eu confio. Vejo, mas não guardo. Foco-me nas sensações e assumo antes outras tarefas que complementam a refeição. Quanto ao decidir em quem votar, aí a história já é outra, com implicações internas e sociais maiores. Não é distração, inércia ou foco noutros pormenores. Votar é um assunto sério. É na realidade um privilégio, pois qualquer escolha implica, em si mesma, liberdade para o fazer. Então porquê tanta resistência da minha parte? Com tanto tempo para me inteirar porquê guardar para a última? Porque implica reflexão e sentido de responsabilidade? Porque tinha dúvidas e medos? Porque desacredito no sistema?
Por várias vezes peguei nos pdfs dos programas eleitorais, não em todos, porque apesar de dúvidas também tinha certezas, e às tantas dei por mim a fazer outra viagem: “O que não pode mesmo deixar de funcionar?”, “O que não pode mesmo falhar?”. “A saúde em detrimento de tudo o resto”, respondi nos meus botões. E de repente, já não me focava em quem votar, mas sim nas queixas das pessoas que me são próximas no que às respostas de saúde diz respeito. Larguei os programas eleitorais e debrucei-me antes nesta desilusão a que se assiste…
A lei contempla a proteção da saúde para todos, de forma digna do princípio ao fim. Proteção, promoção, prevenção, tratamento e reabilitação, cuidados continuados e paliativos. Acesso a cuidados adequados a cada situação, com prontidão e no tempo clinicamente aceitável. É ainda um direito sermos informados de forma adequada, acessível, objetiva, completa e inteligível, e ainda, acrescento eu, de forma empática, pois na maior parte das vezes a situação já é em si de fragilidade continuada. O poder de quem trata e cura não pode nunca ser sinónimo de endeusamento e de distanciamento. A bata branca não nos pode deixar submissos.
Costumo dizer que só escrevo sobre o que de alguma forma me toca, de outro modo não me envolvo por inteiro. A Carla não teve uma resposta pronta para o problema que enfrentava, o meu pai não teve direito a cuidados paliativos, a Joana teve de pedir esclarecimentos que lhe eram devidos acerca da doença da sua mãe. É grotesco ficar sem alternativas no que à saúde diz respeito. Sem ela nada mais tem verdadeira expressão.
Se calhar quando assumo que não dou a devida atenção a certos assuntos, talvez esteja na verdade a priorizar a minha disponibilidade mental para o que de facto me preenche e importa (ou então estou só a tentar justificar as minhas imperfeições).