Opinião

Porta a porta, vai-se esfumando o paraíso

29 mar 2018 00:00

Sempre que encerra uma livraria, como diria Borges, é um bocado de paraíso que se vai.

O escritor argentino já não está entre nós para assistir, mas as muitas portas que se têm fechado nos últimos anos, deixá-lo-iam, certamente, com o coração apertado e a alma em lágrimas.

Como aconteceria a Borges, todos os verdadeiros amantes de livros andarão desolados com o desabar dos seus templos, que para a maioria funcionavam como uma segunda casa, um porto seguro, um espaço onde nunca se está sozinho.

Infelizmente, os que assim pensam e sentem não têm sido suficientes para evitar que, uma após outra, as livrarias vão encerrando, entre elas verdadeiros marcos da nossa cultura e património intelectual.

Poder-se-á dizer, obviamente, que o que se passa com as livrarias não é mais do que acontece noutras áreas do comércio, também elas em dificuldades face à concorrência das grandes superfícies e do comércio on-line.

É o mercado a funcionar e pronto, argumentarão os que acreditam que apenas a procura deve legitimar a oferta, numa lógica de que ‘se o burro quer palha, dá-se-lhe palha’.

Pouco parece importar se esse é o caminho mais curto para a uniformização, para o mais do mesmo e para o estreitamento do horizonte, características tão caras a regimes que gostam pouco que as pessoas pensem pelas próprias cabeças e para quem a crítica e a novidade são ameaças subversivas.

Por cada livraria independente das grandes cadeias que encerra, diminui a probabilidade de termos acesso a títulos menos comerciais, a livros de nicho, a obras de maior vanguarda.

Perdem-se também espaços de cultura, detertúlia, de pensamento e de debate. Perde-se…não tenhamos dúvidas, como se perde quandofecha um jornal, quando um grupo de teatro saide cena ou quando uma companhia de bailadonão sobrevive à diferença entre os custos e asreceitas.

Perde-se, no fundo, um pouco daquilo que a nossa civilização tem de mais grandioso, que é a cultura, essa coisa que em Portugal não vale mais que 0,3% do Orçamento do Estado, apesar dos discursos oficiais tanto falarem dela como aspecto chave para o nosso desenvolvimento e crescimento económico.

De querermos capitais da dita aqui e acolá, e da suposta grande aposta no turismo cultural…Se nada mudar, dentro de alguns anos, as livrarias como ainda as conhecemos hoje serão apenas memórias nas cabeças dos mais velhos, que terão que explicar aos seus netos que no seu tempo se vendiam livros fora dos supermercados, sem cheiro a chouriço e chamadas da colaboradora X à caixa registadora.

Também era possível comprá-los pela internet, mais baratos e a recebê-los em casa, mas a avó preferia ir à livraria, onde podia folheá-los, cheirar o seu papel e dar dois beijos ao autor. E não ia comprar um livro pela internet se isso contribuiria para agravar as dificuldades da livraria onde tanto gostava de ir,não é?

Declaração de interesses: o autor deste texto é gerente de uma livraria.