Opinião
Quando começa a Dança
A dança é um modo de encontrarmos um caminho para fora que nos revele a nós mesmos, e que nos descubra também ao olhar, atento, do outro.
Pina Bausch, de quem há poucos dias se celebrou o 80º aniversário de nascimento, dizia que “algumas coisas podem ser ditas com palavras. Mas há também momentos em que as palavras nos faltam […] então começa a dança.”
Aproximando-me agora a passos largos do final de mais um ano lectivo que, apesar de tantas vicissitudes - e exactamente por isso – ficou replecto de novas experiências de dança e de ensino/aprendizagem, é incontornável o pensamento sobre o corpo e o movimento, e a forma como se revelam traductores de emoções e de relações.
Um pensamento que se torna ainda mais premente nestes tempos extraordinários em que precisámos de aprender a defender o nosso corpo de quase todos os outros que nos cercam, e que, mantidos à distância, foram para nós perdendo o contorno, o volume, e a tepidez, e o movimento que com o nosso se fizesse, no abraço, no beijo, ou na dança que acontecesse.
Mas, e porque a distância ajuda muitas vezes a que se veja melhor, fui reparando com mais atenção em corpos surdos, obstinados, e endurecidos de tanto se conter; em corpos desalentados, de braços pendentes e dedos amolecidos, esquecidos do lugar onde fica o horizonte para olharem apenas rés ao chão; em corpos zangados, fechados na altivez do queixo, que cruzam braços e pernas, e cerram com força as mãos; e em corpos tristes, encolhidos na espera e no desejo de um abraço que não irá, nunca, acontecer.
Talvez pudessem esses corpos dançar, e dançando, soltar a aflição que lhes vai dentro, feita que é dança para que sejam eles a contar o que acontece como ser que os habita.
Talvez pudessem dançar, e sentir por um momento não estar tão presos ao chão que os fez parar.
A dança é um modo de encontrarmos um caminho para fora que nos revele a nós mesmos, e que nos descubra também ao olhar, atento, do outro.
É essa espantosa experiência de liberdade e de comunicação que acontece na dança libertada dos rigores da técnica imposta, na dança que apenas impõe ao corpo a procura do gesto que para si for perfeito, e o obriga a dar-se inteiro à emoção e ao pensamento que o conduz.
Nessa dança, destapam-se as fraquezas, burilam-se os desejos, descobre-se a essência, voa-se mais alto e mergulha-se mais fundo, mesmo quando não se sabe bem que é assim que está a acontecer. Vi essa dança de descoberta nas crianças dos Jardins de Infância, nos alunos adultos de mestrado, nos alunos seniores, e também nos alunos que, aprendendo técnicas, as sabem depois usar para se dizerem como quiserem.
Se o confinamento nos fechou, nos escondeu dos outros, nos reduziu o mundo, também nos foi abrindo portas para dentro que tantos souberam aproveitar para preciosas descobertas de si e surpreendentes encontros com o outro. Sorte a minha poder ter sido tantas vezes esse outro!
“As coisas mais belas estão na maior parte dos casos completamente escondidas”, dizia Pina Pausch.
As coisas mais belas estarão sempre algures dentro de nós. Mas só em ocasiões especiais elas se desvelam, e nos transformam em alguém um pouco mais sábio, um pouco mais forte, e um pouco mais feliz.