Opinião

Quando ler não dá prazer

15 jan 2021 10:38

"Existem para aí muitas falsas dislexias que vão mascarando a verdadeira origem das dificuldades leitoras."

Ai, estou disléxico dos olhos.

Troquei os números todos, estou a ficar disléxica.

Tenho a palavra mesmo debaixo da língua, estou disléxico.

Expressões como estas há às pazadas. De facto, a utilização da palavra Dislexia e das que lhe são familiares é muito comum fora do seu contexto específico. Penso que na maior parte das vezes, as pessoas se referem a alguma confusão, esquecimento ou troca que fizeram no desempenho de qualquer tarefa.

Também os erros ortográficos são comummente confundidos com esta entidade é há quem acredite que a dislexia poderá ter na sua origem um défice visual. Errado. Existem de facto erros característicos da Dislexia, mas não os erros de escrita propriamente. E se a criança precisar de usar óculos não será de todo para corrigir uma dislexia.

O que é então a Dislexia? Para já é um termo em desuso desde 2013. Depois, é uma dificuldade de base neurológica que interfere de forma significativa na aprendizagem da leitura.

Na realidade, o termo Dislexia já não se utiliza nos manuais internacionais de classificação das perturbações e doenças e atualmente a designação usada é Perturbação Específica da Aprendizagem com défice na Leitura. (Eu sei, eu sei… Dislexia era muito mais fácil de dizer, por isso para vos facilitar a vida e para terem tempo de se adaptar à mudança, usarei essa palavra até ao fim deste texto).

Esta alteração terminológica confunde muitas vezes os pais e os professores, pois os relatórios clínicos passaram a usar as classificações atuais e os documentos académicos persistem nas antigas designações. Há por isso que saber, para evitar futuros desentendimentos, que a velha Dislexia e a nova Perturbação Específica da Aprendizagem com défice na Leitura correspondem ao mesmo. E isto é importante porquê? Para falarmos todos a mesma língua e para não surgirem dúvidas no momento de implementação de estratégias facilitadoras e promotoras do sucesso académico do aluno.

Assim, se uma criança, exposta o tempo suficiente à aprendizagem da leitura, mantém dificuldades na correção, na compreensão e/ou na fluência e velocidade leitoras, estaremos, avaliadas outras variáveis orgânicas, emocionais, sociais e neurodesenvolvimentais na presença de uma Dislexia verdadeira. Sim, porque existem para aí muitas falsas dislexias que vão mascarando a verdadeira origem das dificuldades leitoras.

Por exemplo, há miúdos com extrema dificuldade na iniciação à leitura que após a prescrição atempada de um psicoestimulante, passam a ler com relativa facilidade. Isto quer dizer o quê? Que na base das dificuldades estava um défice de atenção e não um défice no processamento fonológico 1, este sim próprio da Dislexia.

É pois importante isolar todas as variáveis, já que ler aos solavancos pode ter diferentes etiologias e para cada etiologia seu plano de intervenção. No entanto, é perfeitamente legítimo pensar que uma criança é disléxica quando no final do 2º ano de escolaridade ainda não apresenta um bom perfil leitor, mas como vimos não é assim tão linear. Para além das dificuldades na atenção, também uma perturbação da ansiedade, uma perturbação do desenvolvimento inteletual, uma anemia ou um meio socioeconómico desfavorecido podem estar na base das dificuldades leitoras que apresenta.

Aliás, nem é preciso ir tão longe. Já certamente vos aconteceu ler e não compreender ou ler e não fluir como habitualmente e não são disléxicos. Pois é… a atenção ou a falta dela é tramada, assim como o desinteresse e a desmotivação pelo tema.

O que se sabe é que as dislexias genuínas resultam de um défice no processamento fonológico e que aparecem em crianças com níveis convencionais de funcionamento inteletual. Nada até ali fazia prever que aquele miúdo espertalhão fosse ter problemas na conversão de letras (grafemas) em sons (fonemas) no início da aprendizagem da leitura, nem se esperava que o reconhecimento automático das palavras e dos seus constituintes lhe fosse dar tantas dores de
cabeça. O miúdo nunca tinha tido problemas!

Mas será que não há nenhum sinal que nos faça antecipar as dificuldades e evitar esta tormenta? Sim, porque para estas crianças, aprender a ler é uma tortura que vai crescendo à medida que sentem perder o comboio das letras. Já os outros lêem ditongos e ainda as vogais estão por saber.

Felizmente existem alguns sinais de alerta, como a forte componente genética desta perturbação. Se houver histórico familiar de dificuldades na leitura, é mais provável que também a criança as venha a experienciar. Também o falar tarde ou abebezado, a dificuldade em dividir as palavras em sílabas e sons, em fazer aprendizagens simples (ex.: saber o nome das cores, de objetos, pessoas), em fazer jogos com rimas ou em memorizar canções e lengalengas, pode levantar suspeitas.

Um disléxico, ou melhor dizendo, uma criança com uma Perturbação Específica da Aprendizagem com défice na Leitura, finta a leitura sempre que pode pela frustração e desprazer na descodificação daquilo que lê. Tende a inventar palavras em função do contexto ou das imagens numa tentativa de saltar obstáculos e chegar mais depressa ao fim daquela corrida inglória. Prefere ouvir as histórias que lhe pedem para ler, pois aí sim a leitura é divertida e percebe-se.

Ler leva-nos a tantos sítios e faz-nos tanta companhia. As crianças não podem ficar privadas deste privilégio pela dificuldade que apresentam. Entender as suas dificuldades desde cedo e traçar um plano de intervenção adaptado é urgente.

1* Conjunto de atividades cognitivas levadas a cabo pelo leitor, que lhe permitem compreender
que os diferentes sons da linguagem falada se combinam para formar palavras e que existe
uma relação previsível entre esses sons.